Breve Epifania¹

17-09-2016 16:16

BREVE EPIFANIA

 

Subitamente olhei pela janela e notei o idoso que mostrava dificuldade em atravessar a rua, mesmo com o pouco movimento de veículos. Aquele homem tinha muito de familiar. Olhava para um lado, olhava para o outro, sempre desconfiado de que poderia ser atropelado a qualquer iniciativa. Ficou ali por alguns minutos, até que uma guarda de transito, sensibilizada com o que via, postou-se ao seu lado e com dois apitos estridentes, parou o trânsito para que ele, enfim, caminhasse confiante. Vagarosamente seguiu o seu caminho, hoje solitário e ausente de mãos piedosas que pudessem ampara-lo. Descobri, imediatamente, que há muito tempo eu conhecia aquele homem negro, outrora alto e altivo, um deus de ébano, segundo comentário fácil de tantas mulheres difíceis, agora arqueado pelos anos. Vivemos a infância e a pré-adolescência juntos, sob a sua sombra desafiei os malvados da época, contando sempre com a sua pressa em socorrer quem ele considerava amigo. Fácil para brigar e com tantas dificuldades com as palavras. Isso era o seu ponto fraco, felizmente para mim, pois comprava a sua proteção ajudando-o na realização das tarefas de linguagem. Quando digo palavras, não eram somente as escritas, mas também para falar não se atinha a quase nada, em ambos os casos usando-as poucas. Tão poucas, que quando se propunha a falar muito, usava-as parcimoniosamente, deixava quem lhe ouvia pensando qual seria a sua mensagem, até onde chegariam seus pensamentos. O que falava, nem sempre intencionalmente, chegava ao desentendimento, ao mal entendido, querelas que muitas vezes terminavam em contato físico.  Não que isso o incomodasse porque segundo o que ele mesmo dizia, havia nascido para o combate. Desde que não fossem com palavras. Não resisti e descendo apressadamente as escadas, logo atravessei a rua e fui ao seu encalço. Tínhamos quase a mesma idade, mas logo o alcancei. Percebi que a minha condição física era melhor. Quando toquei em seu ombro, ele logo se voltou em posição de defesa, instinto que não lhe abandonou. Mas logo, o sorriso aberto confirmava o seu reconhecimento em mim, o amigo de outrora.

- Você? Disse ele.

- Como está passando, meu amigo? Disse eu, abraçando-o com força.

- Bem.

- E a sua vida, como está?

- Bem, disse ele.

Percebi que continuava econômico nas palavras. Mas não me dei por vencido e retomei a conversa:

- Curioso como eu não me esqueço das pessoas. De você eu tenho muitas lembranças, de quando frequentávamos a escola, das nossas brincadeiras, tudo até a mudança de sua família.

- Você está sempre comigo, interrompeu-me. Nunca em lugar distante.

- É, mas a distância, mesmo que pequena nos separou, eu retruquei.

Jair continuou:

- Mas se em outro local eu não posso lhe falar, não tenho perdão ou medo algum.

Precisei parar um pouco para respirar e entender o que ele falava, sobre o que falava. Ele continuou:

- A mesma língua – infectada com o que lhe deixou um gosto – a memória de água, de alimentação, de fome.

Será que ele estava falando para mim? Ou será que ele estava falando somente para ele próprio ouvir?

- Mas e aí Jair? Precisamos nos encontrar outras vezes...

- Algum dia, desejo que não seja este vou continuamente dizer a você palavras como a clara, fina cinza peneirada, como poeira a partir de algum lugar.

E subitamente começou a caminhar, retomando o seu caminho. Deixou para trás alguém perplexo, a tentar entender cada palavra do que tinha ouvido. Voltei para casa e ajudado pela memória, consegui registrar todas elas. Pesquisei e descobri que tinham um autor e não era ele. Curiosamente foram sendo encaixadas em nosso diálogo, como se premeditadamente, tivessem sido construídas para essa finalidade. Somente não entendia como o meu amigo, com tantas dificuldades com as palavras, pudesse saber este poema de cor. Resolvi pesquisar mais e encontrei a minha breve epifania quando descobri o que me esclareceu: JAIR NASCIMENTO NERER, PhD em filosofia e autoridade na obra de Robert Creeley, o verdadeiro autor do seu diálogo.

 

EPIFANIA: Apreensão intuitiva da realidade por meio de algo. Revelação, esclarecimento.

 

 

¹ Narrativa metalinguística, usando como mote os versos de R. Creeley.