Espírito inquieto¹

12-11-2016 16:43

ESPIRITO INQUIETO

 

 

Quando viu que o bombeiro trazia seu filho pela mão, não pensou em nada e não ouviu nada.  Queria encontra-lo, queria abraça-lo, queria beijar a sua face rosada pelo sol depois de dois dias perdido na mata. Não viu o terreno escorregadio e não ouviu os gritos que a alertavam para o perigo. Dez passos foram o suficiente para que caísse no abismo. Eu, agora, consolador, abro o meu espirito para acolhê-la. Espero o seu despertar e vejo o seu apego àqueles que se preocupam em sepultar a matéria, sabendo que ficarão insepultas as lembranças do seu amor, do seu calor, da sua dor. Permito que se aproxime sem me aproximar. Deixo que ainda sofra o arredio dos que não a veem, a frustração dos braços que se lançam sem abraçar, o impedimento absoluto de compartilhar. Serei vigilante, apenas vigilante. Far-se-á necessária a sua compreensão que para os que foram seus, não é mais agente e nem vontade. Deverá surfar buscando conhecer o limite dos limites e esquecer-se das ondas da vida e dos sonhos. Enquanto isso irá querer permanecer junto ao menino, vendo-o cair sem poder amparar, ouvindo-o em orações e falando de saudades, sem poder chorar. Até entender a inutilidade do seu velar. Então o seu espirito inquieto estará domado e compreenderá o tempo de partir para o infinito na reinvenção do espirito, sabendo que para este infinito é imprescindível o eterno. Eu, o consolador, compreenderei que ele estará preparado para ir para Deus.

 

 

¹ Exercício baseado na aula sobre o insólito e a sincronia observáveis na obra do romancista Paul Auster.