Meu Calcâneo Agosto/Setembro
Meu calcâneo
Meados de 1983. Recebi um aviso do governo da Alemanha, minha terra natal, que eu deveria assinar um documento como sucessora de meus falecidos pais, e fui informada que eu poderia fazer isso atraves do consulado em São Paulo. Pedi para meu marido que fossemos para São Paulo, mas ele respondeu-me que não, e que seria melhor eu resolver isso em seu lugar de origem. Inicialmente recusei-me a ir, as lembranças da infancia passada na capital Berlim, onde nasci e vivi todo terror que uma guerra pode causar, ainda estavam vivas. Apesar de eu ter somente 9 anos de idade, vivi e assisti coisas inesqueciveis e de extremissima crueldade. Lembranças de um país em ruinas e muita miseria e fome passada se implantaram em meu íntimo:
(> nunca mais quero ver este lugar ! <)
Porem meu marido, um teimoso Rioclarense nato, com calma e carinho, mudou minhas ideias. Pela primeira vez retornei para Alemanha, depois de 31 anos felizes vividos aqui no Brasil . Que emoção! Que sensação mista de medo e alegria. Mas, ao lado de meu amor, enfrentaria "venha o que vier".
Nosso primeiro destino foi Berlim, onde eu estava sendo aguardada. De Berlim eu só lembrava de tudo em ruinas e muitos mortos e mutilados pelas ruas.----
Que surpresa! Para onde eu olhava, eu só via prédios modernos, um povo alegre, mas cortês e educado, limpeza absoluta, lojas maravilhosamente decoradas. Comecei a entender que uma guerra é um terrivel acontecimento, mas o tempo pode transforma-lo em apenas uma triste lembrança. Depois de todas as formalidade cumpridas, alugamos um carro e viajamos para que eu pudesse lembrar e rever muitos lugares vividos e o ginasio onde estudei, enquanto morava na Alemanha. Entusiasmada queria mostrar tudo para meu marido .
E, sendo assim, começei pela casa onde nasci. Nunca esqueci o endereço. Ficava no bairro residencial "Tegelort", na Rua "Tegelorterufer, 10" ...............
Chegamos, desci do carro e olhando para a casa, uma emoção inexplicavel se apoderou de mim. Tudo continuava igual como era antes. Sómente uma arvore enorme no jardim em frente da casa, não existia mais. Abraçada com meu marido, sem coragem de tocar a campainha , mostrei o lado esquerdo do telhado ,onde havia um "remendo" ainda visivel, porque durante um bombardeio uma bomba quebrou o telhado e caiu no sotão. Com o impacto trincaram varias paredes da casa , porem não explodiu, porque na guerra todas as casas mantinhas grandes caixas cheias de areia no sotão. A bomba fincava na areia e os bombeiros desativavam-na e removiam-na..........
Tudo continuava igual, a cerca baixinha, a calçada larga e em dois niveis , onde no nivel superior bem estreita e encostada nas cercas deslumbrava um canteiro cheio de lindas flores de jasmin rasteiro, cujo perfume espalhava-se por toda rua...............Lembrei que uma vez "fugi" de casa com as crianças do vizinho. Quando voltei, levei uma surra de minha mãe por não ter avisado. Para me punir ela usou um batedor de tapetes feito de vime transado que naquela época substituia o aspirador. Lembrei que não podia sentar-me depois do castigo..........De repente, olhando novamente aquela calçada, imersa nas lembranças da infancia, lembrei de minha prima Elvira e meu patinete.......Elvira era filha unica do irmão de meu pai. Eu tambem era filha unica .Como ela era 5 anos mais velha , passava todo tempo que o horario de sua escola permitia , em minha casa, tornamo-nos "primas-irmãs", e logico, ela tomava conta de mim. ............No Natal ganhei um lindo patinete que brilhava como se fosse de prata. E meus pais permitiam que, em companhia de Elvira, eu andasse de patinete na calçada. E assim aconteceu muitas vezes que eu, ao me aproximar demais do degrau do segundo nivel da calçadinha das flores, raspava o meu calcâneo ( o ossinho do calcanhar) , na sarjeta. Com muita dor, calcâneo sangrando e choro, Elvira me consolava e me levava para fazer curativo em casa. Tudo isso tornou-se tão real em minha mente que parecia que meu calcanhar ainda ardia.............E Elvira !! Onde estava? Será que tambem ela morreu na guerra como tantos outros parentes meus?........Uma semana antes do fim da guerra, meus pais fugiram comigo, de Berlin. Elvira não teve a mesma sorte e ficou em Berlin, porem do lado comunista, atras do famoso muro, de onde ninguem conseguia noticias...........Nos imigramos para o meu querido Brasil , casei-me e Elvira passou apenas fazer parte do passado.
Contei tudo para meu marido e ele me disse: "Porque não a procura ?"
Acessei a "Cruz Vermelha Internacional". ......Um belo dia recebi um telefonema deles, da matriz no Rio de Janeiro, me avisando que na Alemanha Ocidental Elvira não existe, e eles não tem acesso a Alemanha Oriental. A conselho deles, me dirigi ao "Itamaratí" em Brasilia e de lá recebi uma carta com belissimo emblema governamental, me informando o endereço da "Embaixada Brasileira" em Berlin, do lado comunista...........Escrevi para lá, porem ate hoje não recebi resposta.
Como meu marido apaixonou-se pela Europa, viajamos muitas vezes para lá, conhecemos varios países, até que um dia, hospedados num hotel na cordelheira dos Alpes, na cidade de "Garmisch-Partenkirchen" conhecemos entre os hospedes um casal de idosos vindo da Alemanha comunista. Mas como podem viajar? A resposta foi explicativa: Cada ano o cidadão da Terceira Idade pode viajar durante 20 dias para onde quizer porque no dia de receber a aposentadoria todos voltam.....pronto, simples assim!!..........Conversa vai, conversa vem, dei o nome da Elvira para eles. Voltamos para o Brasil e mantivemos correspondencia com este casal. Apos alguns meses, perto do Natal, recebi a tão esperada carta, me contando, que Elvira estava viva, casada e com 2 filhos e ainda morava em Berlin, atras do muro, na parte comunista.. Foi meu melhor presente de Natal neste ano!
Eu e ela trocavamos correspondencia e queriamos rever-nos, eu tambem queria apresenta-la aos meus parentes rioclarenses adquiridos pelo casamento.
Me empenhei o maximo para conseguir traze-la para cá, no meu 50. aniversario, em 1986. Na Alemanha esta é uma data muito importante por tratar-se da " Boda de Ouro" da vida.............e consegui !!!
Apos 42 anos separadas, o grande reencontro.-
Aeroporto Viracopos em Campinas, 1.30 horas da madrugada. eu e meu marido observando os passageiros saindo , como será que ela é agora? Fomos separadas, ela com 13 e eu com 8 anos de idade. Eramos crianças, somos "gente grande" agora. De repente meu marido disse: "Acho que é aquela senhora". Olhei, ela já estava perto de nos.
Suas primeiras palavras:"Porque voce é tão baixinha assim?" Caramba, pensei, nem um "como vai"?
Chegando em casa, depois de ganhar-mos algumas lembranças, eu notei um enbrulho no canto do sofa......."Elvira, ali tem mais um presente para mim?" -- "Ah, não, não, são velas, eu pensei que aqui não havia eletricidade". Não respondi, porque pensei: -- será que ela pensava que vivemos entre canibais no meio da selva , só porque o Brasil fica na America do Sul?
Depois fiquei sabendo que ela embarcou para o Brasil no dia do casamento de seu caçula, tamanha saudade de mim. Ela contou-me tambem quando ela soube que eu morava no Brasil, ela imaginou que eu estivesse casada com um rico fazendeiro negro!!!!
Visitamo-nos muitas vezes , pelo correio trocavamos mini-fitas gravadas com 60 minutos de "papo furado", foi uma convivencia maravilhosa até fim de Janeiro deste ano, quando ela, aos 82 anos, faleceu. Os filhos me mandaram fotos da missa, do sepultamento e do cemitério com muitas arvores, no alto de uma colina, de onde se vê a cidade na qual ela morava. ...