O crime na barbearia

09-09-2016 00:15

O CRIME NA BARBEARIA

 

Olhando ao longe percebo que estou disperso nas coisas, nas pessoas, nas gavetas da história e das lembranças. Sem mensurar importância e valores, em todos os repentes encontro ali partes de mim. Então me lembro de tantas coisas. Boas ou ruins, não importa, fazem parte da minha própria história. Percebo que as conquistas de maior valor foram aquelas irrigadas por lágrimas. Em uma destas gavetas, quase esquecida, busco estes fatos.  Chamo a atenção do amigo ao lado e lhe pergunto se ele se lembra do crime na barbearia.

- Foi entre 1959 e 1960, você não se lembra?

- Eu era criança. Tinha apenas três anos. Como é que poderia me lembrar?

- Pois o caso teve uma repercussão grande. O Marcílio era meu vizinho. Nos negócios era sócio do meu pai. Agora, vendo o Paulinho jogando futebol, as recordações voltaram todas, lembro-me de tudo, como se fosse ontem.

Estávamos sentados na lanchonete do clube recreativo e olhávamos um jogo de futebol disputado por amigos.

- Você falou em crime da barbearia? Fiquei curioso.

- Pois então, os fatos começaram em um conto de fadas, uma verdadeira história de amor. Marcílio e Dolores, moça descendente de espanhóis, se conheceram na infância e desde aquela época, descobriram que tinham muita coisa em comum. Frequentaram a mesma escola, foram às mesmas missas. Por coincidência ou conveniência, cresceram juntos até que com idade suficiente, resolveram casar. Dolores se tornara uma moça linda, voluptuosa no seu mais intimo sentido e a razão principal do amor e também do ciúme de Marcilio. Os anos foram passando e por mais que quisessem, não tiveram filhos. Dolores cuidando da casa e Marcilio se dedicando ao ramo dos transportes, onde conseguiu uma frota de cinco caminhões. Foi justamente nesta época que conheceu meu pai que estava no mesmo ramo. Resolveram formar uma sociedade, entendendo que juntos teriam maiores possibilidades de prosperar. Ele tinha cinco caminhões e meu pai, quatro. Para que o negócio fosse equilibrado, Marcilio resolveu vender um caminhão, aquele mais velhinho. Para tanto foi procurar Paulão, um concorrente e que poderia estar interessado no veículo.

- Uma coisa ainda não consegui conectar, falou o ouvinte. O que tem a ver o Paulinho com isso tudo?

- Olhe bem para o Paulinho. Você acha conveniente chamar pelo diminutivo um sujeito de um metro e noventa e cinco de altura? Pois ele é filho do Paulão ao qual estou me referindo, um sujeito de corpo avantajado, que não gostava de falar baixo e a sua preferência era logo partir para a briga. O mesmo Paulão que na época foi procurado pelo Marcilio para que este comprasse o seu caminhão.

- Paulinho, Paulão...

- Isso mesmo, mas a história só está começando. Quando procurado, Paulão logo concordou com a aquisição. O caminhão se ajustava como uma luva em um contrato que havia feito e para o qual não poderia utilizar os caminhões que tinha, pois todos estavam ocupados. Para o pagamento concordaram que o valor ajustado seria saldado em dez parcelas mensais e consecutivas, sem juros. Naquele tempo isso ainda era possível, pois não se ouvia falar em inflação, taxas, mora e tudo o mais. Afinal estávamos em 1960.

- É isso mesmo, falou Márcio, o ouvinte. Hoje um negócio feito desta forma é impensável.

- Continuando. Tudo estava bem, até o vencimento da quarta parcela. Como era habitual, Marcilio, no dia aprazado, foi até o escritório do qual Paulão administrava os seus negócios, já com a nota promissória, na qual se antecipara e colocara a quitação no verso. Ao chegar, ao contrário dos meses anteriores, foi informado de que Paulão estava em viagem e que somente voltaria dentro de dez dias. Que problemão, pensou ele. Já contava com o dinheiro a receber para fazer manutenção nos outros caminhões. Mas não era o fim do mundo. Daria um jeito. Afinal dez dias não são uma eternidade. Como já era fim de tarde, deu o dia por encerrado e foi para casa. Como de costume, Dolores já o esperava. Estava ansiosa para lhe revelar um desejo grande de trocar os móveis da sala. Queria uma sala de jantar bem bonita que, inclusive, já havia visto na loja. Marcilio pensou que desgraça pouca era bobagem, porque justamente agora, tinha que dizer para a esposa que não poderia comprar. Mais do que isto. Seria a primeira vez que não poderia atender a um desejo de sua amada. Rodeou, mudou de assunto, queria distrai-la ou até mesmo faze-la esquecer do desejo. Mas não houve jeito. Todos os dias ela voltava ao assunto, querendo saber a razão de não poder fazer a aquisição. Passados os dez dias, Marcilio voltou ao escritório de Paulão e o encontrou de mau humor. Logo que chegou, foi informado pelo devedor de que não faria o pagamento combinado e que também as parcelas vincendas não seriam honradas nas datas pactuadas, pois dois de seus caminhões haviam sido roubados.

- Mas ele não havia feito seguro dos veículos? A pergunta de Márcio foi imediata.

- Quê nada. Naquela época não se dava a importância a isto. A criminalidade era pequena, os riscos eram poucos.

- Já está me dando vontade de achar uma máquina do tempo e voltar a essa época, falou o amigo.

- É, mas nem tudo era um mar de rosas como você quer imaginar. De novo à história. Marcilio ainda tentou argumentar que poderia receber o caminhão de volta, que poderiam encontrar alternativas, que também havia assumido outros compromissos. Não falou, mas já começava a corroer o seu íntimo a impossibilidade de atender ao desejo de Dolores. Paulão foi irredutível e não economizou palavras dizendo que deveria procurar seus direitos, que ele não devolveria o caminhão, que dele não tinha medo. Falou, falou, falou e tudo tinha a sua relativa importância, até que o grandalhão se referiu a Dolores. Quando ele disse que ela era muita mulher para ele e para que tomasse muito cuidado porque senão iria ficar sem o seu xodó, foi a gota d’agua. Marcílio avançou em direção ao homem e precisou ser contido pelos empregados dele. Quando saiu, estava completamente desorientado, com dores no corpo e na alma. Foi para casa e contou tudo para a esposa que, no primeiro momento, ofereceu seu ombro para que ele chorasse. Sabia da fama que o devedor ostentava, mas por outro lado, ela tinha certeza de que deveria haver outra forma de reaver o bem. Nos dias seguintes recorreram a advogados, sendo informados que a única forma seria executar as promissórias, e que no prazo aproximado de dois anos aconteceria o término de eventual ação judicial. Tempo em demasia para que seus próprios problemas esperassem.

- Isso continua como dantes na terra de Abrantes, interrompeu Marcio. Hoje uma ação destas demora o mesmo tempo, se não mais.  

- Para infelicidade de Marcilio, os negócios para ele começaram a piorar. Dessa época eu me lembro bem, porque o sócio dele era o meu pai. Em pouco tempo até comida começou a faltar lá em casa. Também Dolores mostrava sinais de impaciência e aquela mulher que até então havia mostrado compreensão, passou a ficar do outro lado. Então, passou a instigar o marido para que fizesse cobranças seguidas. Ante a truculência do devedor, Marcilio não conseguia reagir, voltando para casa mais desesperado a cada investida. Até que a esposa no auge da discussão passou a taxa-lo de covarde e que queria a separação. Assim foi um dia, dois dias, uma semana, um mês. Ele não demonstrava mais vontade para nada. Até que naquela manhã, Dolores deu o golpe de misericórdia. - Marcilio, disse ela, você toma vergonha e resolve esta situação, ou eu vou procurar outro homem que possa me proteger.

- Deus me livre de uma mulher dessas, falou Marcio. Apesar de estar no mesmo barco, não teve o menor dó do coitado que estava remando contra a correnteza.

- Então, em seguida Marcilio saiu de casa e foi em direção ao bar que ficava defronte a barbearia. Aquele era o local onde passava as suas manhãs ingerindo bebidas, até embriagar-se. Já estava pedindo a segunda dose quando viu Paulão entrar na barbearia. Ali estava a razão de todos os seus males. Ali estava o homem que estava lhe tirando a Dolores que ele tanto amava. Não fez nenhum esforço. Deixou que o ódio crescesse e ficasse maior que ele. Sentiu as lágrimas escorrendo por seu rosto e mansamente levantou-se e começou a atravessar a rua, caminhando em direção ao seu desafeto. O desespero não permitia que a sua razão lhe falasse. Apalpou na cintura o punhal que trazia sempre consigo, adotado há muito tempo como defesa. Naquele momento tinha para ele uma missão infame. Notou que Paulão já se encontrava deitado na cadeira para que lhe fizessem a barba. Esperou ainda um instante e no momento em que o barbeiro virou-se para amolar a navalha, Marcilio fez a sua investida final. Um golpe único, com furor, com raiva, direto no coração. Depois a fuga, sem olhar para traz. Enquanto procurava abrigo em lugares distantes, ficou sabendo da morte do seu desafeto. Dias depois foi preso e julgado, foi condenado a muitos anos de prisão. Não suportou e alguns meses depois, cometeu o suicídio.

- Cara, que história é essa. Tudo isso aconteceu mesmo?

- Tudo conforme eu lhe contei. Esta é uma das histórias que estão guardadas na gaveta das minhas lembranças. Percebo que estou disperso em muitas coisas, nas pessoas, nas gavetas: e de repente, encontro ali partes de mim.

- E pensar que a morte acaba com tudo isso. Com as coisas, com as pessoas e com as gavetas.

- Taí uma coisa que posso lhe dizer. Não tenho medo da morte, não me importo. A morte vai nos moldando a cada dia, pois em vez de viver, morremos um pouco a cada minuto. Ainda bem que a cada manhã a vida se renova. Olhando o sol em cada amanhecer eu até me sinto eterno... até morrer.