O pássaro e o rio

21-04-2016 17:33

O PÁSSARO E O RIO

 

Eu, pássaro, não sou João ou Antônio, sou apenas o senhor do meu espaço em minha vida efêmera.  Vou e volto vestindo cores, beijando flores, experimentando sabores. Às vezes pouso no galho mais alto, da arvore mais alta. Ali canto o que falo, me calo para ouvir o Deus que trabalha. Chama a minha atenção aquelas quatro pessoas sobre a ponte do rio. Uma olha a paisagem ao longe, percorre assim a estrada que vê, sem se preocupar com a agua do rio. Ouço-a murmurar sobre a sua “curiosidade de conhecer lugares novos que viu em fotos e reportagens e que a fez sonhar. Sonho que faz a estrada andar em nossa mente e assim a estrada permanece viva enquanto sonhamos”. Outra olha para a curva de onde para ela o rio parece nascer e olhando as aguas que passam em seu manso trotear, também murmura que “não podemos parar o tempo, não podemos parar a água do rio. Não conseguimos parar o caminhar da água do rio e o caminhar que nossos filhos percorrem ao longo da vida. Não conseguimos alcança-los. O tempo passa muito rápido e nem sempre damos conta o quanto ficamos para trás”. A terceira pessoa olha diretamente para as águas que passam por debaixo da ponte. Murmura que “já estava no descanso da vida. Sempre correu em busca do possível e do impossível. Não tem olhos para mais nada. Queria ser o cavaleiro das conquistas, construir o seu castelo onde traria ao aconchego dos seus olhos, aqueles que o chamavam de pai, de filho, de meu amor. Queria ter batido mais palmas, ter tido mais sorrisos na alma, ter sido até o amor que não compensa, sendo até menos do que você pensa. Ficou, entretanto, com tantas coisas construindo tão poucas coisas. Hoje se surpreendeu com o tempo e viu que seus filhos se parecem com agua andante, e o irrecuperável curso do tempo. Olhava a sua imagem espelhada naquela agua límpida e refletia que enquanto eles se apropriavam do empoderamento, as marcas do tempo se instalavam em seu rosto. Descobriu que tanto os amava que se permitiu pensar que a perda de um deles, seria a pior dor do coração. Até Deus experimentou esta dor. Não suportou e ressuscitou o seu filho em três dias”. A quarta pessoa olha as aguas passadas que iniciam o seu galope em direção à cachoeira e murmura que “As crianças crescem tanto e continuam tão nascentes, como semente que desabrocha e aos poucos floresce sem desvanecer. Trocam de roupagem e de identidade, driblam viagens através do tempo. Ah! O tempo... Vão retratando as viagens, caminhando como um rio, sonhando o tempo da natureza”.  Eu, o pássaro, o quinto elemento digo apenas que cada gota do rio que vem e passa, cumpre a missão de renovar o seu curso, assim como a vida se renova a cada instante, sempre como uma segunda chance de se cumprir o propósito de Deus. As pessoas sobre a ponte não se olham, não se veem, não se encontram, não se falam. Apenas vão embora. Não sei se estão indo ou vindo. Não as vi chegar. Agora canto o meu canto para a ponte surda. Surpreendo-me quando vejo as quatro pessoas se voltarem para ouvir o canto deste rouxinol.

 

Este texto é uma criação coletiva de Hedi Duarte, Celi Munhoz, Vanderlei Camargo e Julia Parizotto. Baseado na tarefa embasada nas metáforas de Mia Couto no livro "Terra Sonâmbula".