Preferência talante¹

15-10-2016 13:54

PREFERÊNCIA TALANTE

 

 

Era um destes dias modorrentos, quentes, úmidos, que não traziam outras vontades que não fosse ficar à sombra, tomar uma agua de coco e cultivar aquela malemolência gostosa do fim de tarde. Sentado naquele bar de praia, eu observava aqueles garis realizando a limpeza da praia e era tanto o calor que a única coisa que consegui foi sentir pena pelo esforço que faziam. Ah, sim! Também pronunciar algumas palavras de baixo calão para aquelas pessoas que estiveram ali usufruindo do seu lazer. Tudo baixinho, logicamente para não chamar atenção. Não queria discutir, explicar, não queria nem falar. Somente ingerir aquela agua de coco que havia pedido e logo depois uma cerveja gelada. Ainda olhando toda a sujeira deixada por aquelas pessoas, não sei por qual razão comecei a pensar no efeito borboleta, na teoria do caos. Efeito borboleta é um termo que se refere à dependência sensível às condições iniciais dentro da Teoria do Caos. Ele foi analisado pela primeira vez em 1963 por Edward Lorenz e segundo a teoria apresentada, o bater de asas de uma simples borboleta poderia influenciar o curso natural das coisas e assim, talvez, provocar um tufão do outro lado do mundo. Se considerarmos isto, as nossas atitudes, o exercício de nossas preferencias poderá determinar, em linhas gerais, quem vai e quem fica. Será que todas estas pessoas que estiveram nesta praia têm consciência de alguma coisa próxima disso? Com certeza, não. Apenas trouxeram suas virtudes e pecados que foram carregados de volta. Continuei pensando que mesmo eu, digno produto de uma sociedade insensível ao seu próprio destino, vivo caminhando entre encruzilhadas e exercito as minhas preferências, muitas vezes, olhando para o meu próprio umbigo. Pensando somente que quando a guerra acabar o que eu quero mesmo é estar vivo. Mas que encruzilhadas são estas? Em todos os momentos elas estão ali a exigir de mim o exercício de preferências que determinarão os acontecimentos. Nada existe que não tenha os seus efeitos colaterais. Muitas vezes eu fico meditando que seria até bom se não tivéssemos o livre arbítrio. Parei de filosofar. O calor me tirou o ânimo. Também por ver Pedro se aproximar. Conhecia há muito tempo aquele rapaz brilhante, agora um alto executivo de uma empresa financeira.

- Como vai marajá? Ele assim me chamava por ter conseguido me aposentar muito cedo para os seus padrões, apesar dos cinquenta e cinco anos de idade.

- Vou bem! O que você conta de novo? Pela bermuda que está usando presumo que está de férias.

- Gozando de meus últimos dias de folga. Cheguei ontem de uma viagem que realizei para o Pantanal. E tenho um fato que quero lhe contar. Eu não entendo como algumas pessoas deixam as oportunidades da vida passar, somente por não abandonar certas preferências que assumiram.

- É o livre arbítrio, emendei.

- Mas veja você o que aconteceu. Eu estava hospedado em um hotel localizado às margens do rio. No segundo dia, levantei pela manhã e ao olhar pela janela, avistei na outra margem um ribeirinho acomodado em sua rede. Como não tinha nada programado para aquela manhã, fiquei observando. Em determinado momento levantou-se e ali mesmo, na margem, começou a pescar. Logo pegou dois peixes grandes. Imediatamente levou um para dentro da choupana em que morava e em seguida veio ao hotel para vender o segundo peixe. Com o dinheiro passou na mercearia e comprou mercadorias que necessitava. Depois voltou para a rede e ali ficou o restante do dia. No dia seguinte, a sua rotina foi a mesma. Pescou dois peixes, um seria a sua refeição e o outro vendeu ao hotel, comprou alguma coisa e voltou para a rede. Não me contive e pensando em fazer uma boa ação, fui abordar o sujeito. Iria usar de todos os meus conhecimentos sobre economia e finanças e seria o guru daquele homem. Esperei que completasse a sua rotina e logo cheguei:

- Meu bom homem. Faz dois dias que estou observando você ali do hotel. Eu lhe pergunto, a sua rotina é sempre a mesma? Você pesca dois peixes, come um e o outro vende ao hotel? Depois volta para a rede e aí fica o dia inteiro?

- Sim doutor, foi a sua resposta.

- Mas você não pensa no futuro, você não tem aspirações?

- Faz muito tempo que eu preferi ser assim, deixar a vida me levar.

- Mas veja bem. E se você, ao invés de pescar dois peixes, pescasse três. Você comeria um e venderia dois. Com a venda de um, você continuaria comprando o que precisa. Com o dinheiro de outro começaria a fazer uma poupança. Logo você poderia comprar um equipamento melhor e então poderia pescar quatro peixes, sempre comendo um, comprando com o valor do segundo e fazendo poupança com o valor dos outros. E assim por diante. Logo você estaria pescando muitos peixes. Então poderia comprar um barco, contratar outros pescadores. Não demoraria muito e estaria com uma frota de barcos e então poderia montar um frigorifico. Eliminaria os atravessadores, ganharia muito dinheiro. Quando chegasse a esse ponto, você então contrataria alguns executivos que iriam administrar todos os negócios para você. Aí sim você poderia deitar-se na rede e ficar o dia inteiro tranquilo.

            O homem olhou bem para mim e na sua simplicidade me disse:

- Mas doutor, para que dar tantas voltas? Eu já estou tranquilo deitado na rede.

 

TALANTE: Decisão dependente apenas da vontade; alvedrio; arbítrio, desejo.

 

¹ Exercício relativo ao tema apropriações, experimentações; o mote foi poema de Wislawa Szymborska - "Possibilidades".