Encontros e desencontros

30-06-2015 15:44
A  bela e  sinuosa estrada, orlada de árvores frutíferas que lhe dão fresca sombra durante o dia e um cunho de melancólica poesia durante a noite, leva até ao velho casarão que ainda guarda um ar do período colonial, com  quartos e banheiros  no andar de cima , salas grandes, cozinha  e despensa no térreo e,  ainda, um sombrio porão. Uma escada em ziguezague, com grossas tábuas carcomidas pelos cupins, a pintura desbotada lembra o que um dia fora azul, paredes e piso desgastados pela ação dos ventos  e da chuva intensa naquela região.  Mobília, quase não há; decoração cinzenta com quadros de santos. Num dos quartos, que sugere ser do casal, há um prego onde está pendurado um vestido grená, mangas em organdi, punhos cheios de botõezinhos com arremates em renda guipir que   já dá  sinais de traças famintas. Na sala principal  um retrato em branco e preto, com  uma moldura em forma de elipse, guarda a foto de um casal muito jovem, vestidos de noivos, onde algumas teias de aranha já se arriscam no ninho, serve de testemunha para um cenário de infinita tristeza numa eterna espera  dia após dia.
A linguagem muda da dor  que ficara latente como o fogo   debaixo das cinzas do tempo, ressurge agora e  queima o doloroso diálogo, quase um monólogo entre a mãe e as filhas, inocentes  coadjuvantes numa  história  de muita amargura  e desesperança.
Ao ser surpreendida pelas perguntas das filhas sobre o vestido já que passara desapercebido durante tanto tempo e questionamentos não eram comuns nessa época,  a mãe como num lamento profundo, herança do sofrimento calado, resignação, revolta contida, e autoestima destruída revela às crianças a origem desse troféu maldito que ela exibe para  se lembrar sempre, porque a esperança também afaga os maus pensamentos de masoquismo e vingança. Começa, então, a narrar a triste história que a saga do vestido escreveu.
Sentindo sempre a presença do homem que à espreitava como um cadáver insepulto, narra com palavras entrecortadas o segredo daquele que é a desgraça de uma família que um dia fora feliz, e elas ouviam com doce e enganadora inocência da criança que havia sido blindada da verdade agora escancarada.
Esse vestido representa o sofrimento que vosso pai nos impôs. Deixou-as pequenas, me bateu, passamos privações. Envelheci perdi a saúde e os dentes. Mãos escalavradas, cabelos desgrenhados;  nem a sombra da jovem sonhadora que um dia  fui; perdi a vontade de viver; lágrimas não tenho mais; as poucas joias na farmácia pagou contas; tudo por causa de uma dona que esse vestido usou.  Mulher-dama linda, com o colo à mostra, cheirando a perfume caro que por  ela vosso pai se enrabichou. Ela, acostumada aos prazeres mundanos, com o sorriso forjado pela profissão, um dia o deixou, ele  para satisfazer seus caprichos se  humilhou  arrastou-se à seus pés, deu-lhe sua fortuna mas a dona   importância  não  deu.
Na imaginação fantasmagórica  ouvia os passos do homem e entrecortava a narração e, diante do silêncio absoluto continuava pela insistência das meninas. Vosso pai dominado pela paixão doentia pediu-me que procurasse a dona e eu, no fundo do poço,   o fiz, pois amor próprio não tinha mais.. Diante da recusa da mulher-dama vosso pai sumiu no mundo e nossa infeliz história de privações vocês conhecem. A raiva toma conta de suas lembranças e juntando os pedaços soltos da memória, enfim, disse exatamente o que fazia no prego aquele vestido que representava tanta dor. Guardava-o como um troféu maldito para não se esquecer de lembrar o  ódio e o desprezo que sentia agora.
Um dia a dona me procurou; pobre, sem o viço de outrora,  com o rosto rabiscado por profundas linhas de exaustão, chorosa com uma trouxa na mão  me entregou esse vestido sentindo a mesma dor que um dia havia sido minha. Nesse dia o destino  cruzou nossas  vidas,  que a sorte sempre separou, unindo-nos na mesma dor. Experimentamos o inferno e o paraíso; humilhação, desprezo, ódio, subjugação no mesmo rebojo de emoções desencontradas.
Era como se ela devolvesse o malfeito que um dia usara para ofender dona casada. Vosso pai a deixara  quando ela se enamorara de verdade. Pendurei-o na parede,  acompanhando ao longe seus passos trôpegos no caminho de volta. Quando seu pai chegou não disse nada, olhando com desprezo e indiferença o vestido. Pediu-me o jantar e suarento se refestelou. Ficou em mim sensação esquisita de vingança e uma falsa sensação de paz de que tudo havia sido uma quimera um pesadelo daqueles que se custa acordar. 
Enfim, despertara de seu sono letárgico, e como o anjo desbotado com asas quebradas que um dia fora o chafariz no jardim do casarão, surge a borboleta não tão bela, mas com vontade de voar livre. Encerra o triste diálogo monólogo ao dizer: -Ouço vosso pai subindo as escadas. Cerram-se as cortinas. Fim da cena