Entre a caridade e a prudência

29-09-2015 15:31

Entre a caridade e a prudência

Fui criada numa família muito simples, com dificuldades até, mas dentro dos padrões cristãos. Compartilhávamos o pouco com vizinhos e amigos. A ajuda também era mútua em ocasiões de doenças ou partos. Nas longas prosas da tarde no portão, trocávamos experiências e, quando caía a noite, procurávamos as Três Marias no céu coalhado de estrelas; nos deliciávamos com as imagens da lua, tentando decifrar o terrível dragão. Era divertido. Dormíamos cedo – não tínhamos TV – mas não sem antes fazer uma oração e pedir a bênção dos pais.

Na ampulheta, o tempo corre devagar, mas implacável. Quantas mudanças na política, na economia, na oportunidade para todos. Mais comida na mesa e, na medida em que a  tecnologia avança, mais necessidades também.

Mas, no país imenso abençoado por Deus, como diz o poeta, com a costa maravilhosa, florestas, cachoeiras, rios imensos, grande variedade de clima, as tempestades e as rajadas de vento avançam sobre nós como camicases, tisnando nossas esperanças. Não são fenômenos da natureza, pois até nesse quesito fomos abençoados. São rajadas de metralhadoras, de impropérios, de incompetência, de desmandos, da roubalheira, da conivência com o crime que é mais organizado que nosso governo. Os noticiários dos meios de comunicação são recheados de notícias escabrosas, de crimes hediondos e discussões abstratas de defensores e acusadores, sempre no tom meio palanque meio sacristia, em  uma arenga sem fim que não se converte em resultados.

E aí perguntamos: — Como ficamos nós, no meio desse fogo cruzado?

Não sabemos em quem confiar; não divisamos que futuro esperar. Desolados, sós, deparamo-nos com a bandidagem e a insegurança, não olhamos no olho de ninguém ao nosso lado. Todos nos parecem inimigos, algum lobo à espreita da presa. Infelizmente, já nos acostumamos com a morte ao nosso lado, como uma sombra que passa. Só a dor não passa. Gestos simples de gentileza há muito foram esquecidos. É cada um por si, vivemos entrincheirados, prontos para a defesa e o ataque. Escondidos debaixo do tapete, nossos preconceitos enraizados vez em quando mostram, mesmo que sutilmente, suas unhas polidas.

Falar sobre isso nem vem ao caso agora, nem haveria espaço para tanto. O que pretendo relatar é uma experiência por mim vivida que deixou aflitos meus familiares, que consideraram meu gesto imprudente demais para os moldes de hoje. E não sem razão,  pois algumas experiências vividas foram muito dolorosas.

Estacionei o carro em frente ao Pet Shopping, desci com a bolsa a tiracolo e minha cadela nos braços, ansiosa para o banho que a aliviaria do sol escaldante e do calor insuportável.

Agachado rente ao muro, um rapaz aparentando menos de trinta anos logo se dirigiu a mim pedindo ajuda. Arrepiei-me toda antevendo um assalto. Estava de chinelo, bermuda, boné e um pequeno celular na mão. Trajes comuns, que estamos acostumados a ver nas ruas e também nos noticiários. Todos têm a mesma cara e “ninguém traz estrela na testa” como diz o ditado.  Diante do impasse, fiquei sem saber o que fazer, com minhas ideias brigando entre a desconfiança e o coração. Este falou mais alto.

A ajuda que o rapaz pedia era para ligar para um senhor, morador da casa à frente, para quem havia trabalhado. Tinha um cartão nas mãos, com um número de telefone; mas não conseguia ligar, pois seu celular estava sem crédito e o morador não estava em casa. Angustiada pela luta interna, abri minha bolsa, pequei meu celular e, com ela aberta e a cachorra no colo, com dificuldade vi o número e disquei.

Realmente, quem atendeu minha ligação foi o morador da casa à frente. Disse que havia saído rapidamente, mas que o rapaz o esperasse, que ele logo estaria ali.  O jovem, feliz, agradeceu muito, brincou com minha cachorra e nos despedimos.

Ufa, que alívio!, mas dentro de mim me tocava o remorso por ter desconfiado. O Evangelho nos ensina a amar o nosso irmão como a nós mesmos, mas também que “a caridade não dispensa a prudência”. E ficamos nós nesse turbilhão de sentimentos desencontrados. Mesmo assim, ainda acreditamos na justiça dos homens que, embora lenta e meio manca, está fazendo seu trabalho. Mas acreditamos muito mais na Justiça Divina, essa sim, implacável.

Com certeza, ainda viveremos para ver reinar a reorganização e a reconstrução deste país maravilhoso chamado Brasil.