Fanfarronada¹

15-12-2016 16:53

A CONVERSA RODA

 

 

A cidade era pequena e o tempo ali parecia que andava para trás. O progresso passava longe, o que era importante perdia importância, a população envelhecia. Irmã menor das cidades grandes, ali imperavam usos e costumes de antigamente, entre eles o de cuidar da vida alheia. Primeiro o prefeito, em seguida o padre e por fim o gerente do único banco instalado. Estas eram as autoridades maiores, depois vinham o juiz e o delegado. Escobar, gerente a muitos anos da agência local, vivia reclamando de ser esquecido pela diretoria naquele fim de mundo. Naquela tarde, findo o expediente e com nada de importante a fazer, resolveu ir até o boteco e gastar uns dedos de conversa. Ali encontraria os amigos ou pelo menos Juca, companheiro de tantas biritas e que era pouco dado ao trabalho, mas um companheirão quando o objetivo era trabalhar as ideias. Chegou e estranhou o fato de poucas pessoas estarem no local. Mesmo assim, ocupou a mesa estratégica de onde podia ver o que acontecia na praça. Logo foi atendido pelo Freitas, garçom antigo na profissão e na idade. Como sempre, Freitas tinha uma estória engraçada para contar e logo foi atrelando: Sabe aquela história do homem que chegou ao céu e foi recebido por São Pedro? Ante a negativa, continuou. Pois então, chegou à porta do céu e São Pedro lhe disse que para entrar teria que soletrar, de primeira, a palavra amor.   Se errasse seria jogado no inferno. Sem demora, ele soletrou A-M-O-R. Imediatamente foi autorizado a entrar. Passados alguns anos, o mesmo homem foi incumbido de tomar conta da porta do céu. Por coincidência, a primeira pessoa que chegou foi sua mulher. Quando ele lhe perguntou como havia passado todos estes anos sem ele, a esposa foi dizendo que passara muito bem. Recebera o polpudo seguro que ele havia feito, vendera as suas propriedades e com toda a fortuna, viajou para o mundo inteiro na companhia de outro homem que conhecera e com quem morou até agora. Ontem, estava esquiando com ele nos Alpes suíços, batera a cabeça em uma pedra e agora aqui estava. Queria saber como fazer para entrar no céu. Muito fácil, falou ele. Eu vou dizer uma palavra e se você soletrar corretamente e de primeira, entra. Caso contrário, vai para o inferno. E qual é a palavra? OFTALMOTORRINOLARINGOLOGISTA. Depois de gostosas risadas, o garçom informou que o Juca não demoraria. O homem havia se ocupado na renovação de sua carteira de habilitação, o que lhe tomou quase a tarde toda. Isso era até bom, pensou Escobar, pois lhe permitiria ficar observando as pessoas que passavam pela praça. Gostava de discernir sobre tipos, comportamentos e perfis, tentando adivinhar personalidades a partir do que via. Às vezes acertava, outras errava longe. Como quando observou aquele rapaz que muito gentilmente ajudava o senhor Mateus a atravessar a rua, amenizando as suas dificuldades que a idade havia lhe imposto. Na ocasião foi formando o perfil do benfeitor como um moço bem educado, trabalhador, bom filho e tudo o mais. Exceto pelo esgoelar do idoso que gritava pega ladrão quando deu pela falta da carteira e do celular, habilmente subtraídos pelo falso piedoso enquanto o ajudava na travessia. A correria foi em vão, porque o larápio havia desaparecido.  Voltou a sua posição de espectador e viu quando Joana se aproximou de Pablo, que estava sentado em um dos bancos. Conhecia a ambos e sabia do interesse da moça em reabilitar o rapaz e quem sabe, até enganchar alguma coisa no futuro, pois apesar da situação era um partidão. Depois de um pouco de conversa, o casal se despediu com um abraço e cada um seguiu para um dos lados da praça. Quando Juca chegou, precisou ouvi-lo sem parar, falando de suas dificuldades em conseguir o novo documento, de quanta burocracia havia enfrentado. Foi quando resolveu comentar sobre o encontro do casal que a pouco havia visto na praça.

- Sabe Juca, o Pablo, aquele rapaz que teve problema com dependência química, filho do Nestor? Pois é, acho que de tanto consumir, ficou meio boiola.

- Me explica primeiro esse negócio de dependência química. O que é isso?

- É o cara que fica viciado em substancia dopante.

- Você quer dizer drogas?

- Isso mesmo. Como eu estava dizendo, acho que ele ficou...

- Concordo. Ultimamente também estou achando ele meio diferente.

- Pois é. Agora a pouco eu vi ele e a Joana conversando. Juca você conhece a Joana?

- E quem não conhece, respondeu Juca. Aquele monumento de mulher.

- Como eu estava dizendo, eu vi a Joana dando em cima dele, ali mesmo na praça, e ele nada. Ah se ela me desse bola!

- Aquilo não é para o nosso bico, não. A afirmação de Juca trazia algo de nostalgia.

- Juca, só lhe peço uma coisa. Esta nossa conversa deve ficar aqui, somente entre nós, falou Escobar. Se a minha mulher ficar sabendo que eu ando olhando a Joana passar, ela me esgana. Você sabe como ela é ciumenta.

- Pode deixar Escobar. Nesse negócio de falar da vida dos outros, eu sou um túmulo.

Continuaram conversando por mais algum tempo e depois do ultimo copo, foram para casa. Escobar tinha uma viagem marcada para a manhã seguinte, quando ficaria duas semanas na casa de parentes. Este tempo seria usado em resolver problemas referentes ao inventário dos bens de seu pai. Não chegou há completar uma semana e recebeu uma ligação telefônica de sua esposa, exigindo que ele voltasse imediatamente, pois ele era a causa da pequena cidade fervilhar em grande agitação. Escobar estava sendo acusado de infâmia e inclusive o padre queria excomunga-lo. Mas por quê? A mulher não quis responder e antes de desligar, disse que se tudo fosse verdade, iria pedir a separação. Escobar fez somente meia mala e já estava na estrada. Não tinha a menor ideia das coisas que havia ouvido. Quando se aproximou de sua casa, o seu carro foi logo cercado por algumas pessoas que ameaçavam tira-lo do veiculo para lincha-lo. Buscando coragem, saiu do automóvel e enfrentou o povinho. Mas o que aconteceu?

- Seu sem vergonha, falou dona Gersina, mãe de Joana. Como é que você tem coragem de ficar espalhando esta história da minha filha. E até envolvendo o Padre Feijó, um santo homem, que você anda dizendo que é boiola. E ainda dizendo que fica todo dia esperando para ver a minha menina passar só para dirigir-lhe gracejos.

- Não estou entendendo nada, falou Escobar. Que história é esta?

- E falar que eu estou dando uma de corno, falou Juvenal. Que a minha mulher está participando de uma bacanal com o Padre e a Joana. Não sei por que ainda não lhe acertei com um tiro nesta sua fuça.

- O que é isso Juvenal, eu não falei nada disso. Deve haver algum mal entendido nisso tudo.

Aos poucos foi se esgueirando e conseguiu entrar em casa. Até agora não estava entendendo nada de tudo aquilo. Se bem lembrava, a única vez que havia se referido à moça foi na conversa que havia tido com Juca. Será que aquele pilantra havia dado com a língua nos dentes? Mesmo com os reclamos de sua mulher que exigia as explicações, foi imediatamente a procura do fulano, encontrando-o na mesma mesa de bar.

- Juca, sobre aquela conversa aqui mesmo, na semana passada. Você falou sobre ela para alguém?

- Não falei para ninguém, você sabe que eu sou um túmulo. Só fiz um comentário com a minha mulher, mas ela é outro túmulo.

- Você acha que sendo dona de um salão de beleza, ela ia ficar quieta, Juca?

- É, ela pode ter comentado com alguém, mas na certa pediu segredo, que nada fosse dito e para ninguém.

- Já sei, agora estou entendendo. Dalí o assunto foi passando, sempre com a recomendação para que não fosse contado para mais ninguém. Agora está na boca da cidade inteira. A Joana, que estava ajudando o Pablo, virou prostituta de rua. O Pablo virou o Padre, navegando entre boiola e garanhão e que, ainda, está dando em cima até da mulher do Juvenal. Não sei mais como vou esclarecer isso tudo.

Quando olhou para Juca, este gargalhava com toda a balbúrdia que havia se formado. Antes de ir embora, murmurou: Bem feito pra você seu Escobar. Devia saber que nesta cidade onde tudo é fofoca “Quem conta um conto, aumenta um ponto”.

 

¹ Exercicio do gênero fanfarronada, na oficina sobre contos populares e contos canônicos.