Meu Hexágono

31-05-2016 16:43

Proposta do exercício sobre "A biblioteca de Babel"

 

MEU HEXÁGONO

 

Mil cento e onze este é o numero do meu hexágono. Não o escolhi, foi me designado desde que fui gerado. Desde então ouvi que não deveria abandona-lo. Mas por teimosia, vaguei entre muitos, atendendo o meu desassossego, a minha curiosidade ou até minha irresponsabilidade. Procurei a legalidade, mesmo tendo praticado a inconsciente ilegalidade. Meus erros foram mais do que o razoável, sempre procurando a arte do possível.Agora que voltei, depois das minhas jornadas improváveis, vejo que nada mudou. Olho para ambos os lados e continuo vendo as cinco longas estantes com todos aqueles livros misteriosos. Inúmeros, iguais. Folheei a todos, descartei-os um a um. Não eram eu. Meus dedos calejados e meus olhos cansados são as minhas testemunhas. Mas um ainda está ali a contar a minha história. O seu dorso nada diz, mas vejo as suas paginas coloridas, quatrocentas e dez como em todos os outros livros, separadas em amarelo, em azul e em verde.  As páginas amarelas que começam em um tom mais claro e vão escurecendo, dizem de meu passado. Apenas uma pagina reflete azul e é o meu hoje. A cada dia ela se renova pela transformação de uma página verde, à disposição para relatar as ocorrências do meu dia. Às vezes o espaço é insuficiente, outras vezes escrevo apenas uma linha.  Quando termino de escrever ao final do dia, ela que é azul, logo se torna amarela. As verdes são folheadas por mim todos os dias por querer saber se o meu amanhã será futuroso ou até a hora da minha morte. Mas elas nada revelam, continuam com seus 25 símbolos escritos de tal forma caóticos que permanecem indecifráveis. A cada manhã a primeira página verde se torna azul. Vejo que o seu número diminui e isto é consequência da sua mutação. Hoje olho as páginas amarelas porque são as únicas que estão decifradas e distribuo neste meu hexágono os figurantes da minha história, tal qual sou figurante na história de cada um deles. Vejo ali tia Mariquinha, com a sua sabedoria singular, que quando surpreendida bebendo vinho em dia de abstinência se justificou: “Querido, nesta minha vida já tive tempo para cometer meus grandes pecados e por eles serei julgada. Com certeza Deus não está preocupado com os pequenos deslizes da minha velhice”. Também desfila Ambrósio, que em desobediência ao bibliotecário, caminha com o seu livro debaixo do braço a proclamar: “Não adianta nascer para amar. Já está tudo escrito aqui, diz apontando para o seu livro. Vou nascer pequeno e sofrer. Vou crescer e morrer, somente podendo sonhar e sonhar. Já está tudo dito, o que muda são as oportunidades e a forma de dizer”. Ainda tantos outros Joãos, Antônios, Marias desfilam pelas páginas amarelas. Fecho meu livro. “Agora paro de julgar como se fosse Deus, mesmo não tendo a sabedoria divina”. Tenho as minhas pernas cansadas. Este poderia ser o epílogo de minha história. Mas assim não vai ser. Não vai ser porque eu não quero. Tenho muitas páginas azuis para escrever o meu melhor poema que será sempre aquele que virá. Quero viver ainda toda uma outra história. Amar mais, cantar mais, sonhar mais, me preocupar menos. Chorar somente se for de felicidade. Dizer para todos que gostam de mim que eu os amo, e para aqueles não gostam “vocês vão ter de me aturar”. Parar somente quando já tiver realizado todas as minhas buscas possíveis. Então saberei que dali a pouco voltarei a usar fraldas. Ai retornarei para ficar e quando chegar o momento, “na hora da minha morte, amém”, esperarei as mãos piedosas que me lançarão no abismo infinito. Saberei que a minha queda não será eterna, porque meu corpo físico será transmudado na mesma matéria que me consome. Logo a minha alma se libertará como uma leve brisa e estará pronta para o juízo final. Então pedirei a Deus que me espere, em uma espera quase eterna. Enquanto isso caminharei entre as estrelas.