Natal diferente - Novembro

30-11-2014 14:30

A noite quente e úmida cai devagarinho, quase imperceptível. Aves procelárias sobrevoam anunciando tempestade. É sempre assim nestas noites quentes no Pantanal.

A velha chalana navega vagarosamente, deslizando sobre as águas que já se fazem revoltas, mas nem por isso tiram a tranquilidade do velho timoneiro. Algumas redes rotas, presas nos esteios, balançam sem tirar o sono dos poucos passageiros. A senhora gorducha, com o bornal recheado de guloseimas natalinas ganhadas na capela da cidade, tentava dormir alheia a tudo. O homem franzino de barbicha tentava segurar com força o saco de estopa puído que deixava à mostra os cascos do leitão gordo que antevia a imolação para comemorar o nascimento do Menino Deus. A guriazinha com roupinhas de festa e dedo na boca abraçava sua boneca ninando-a cantarolando. Sentado a meu lado, um padre com sotaina desbotada e olhar beatífico segurava o negro rosário rezando baixinho. Vez em quando tocava as águas do rio, levando-a ao rosto para mitigar o calor. Tento imitá-lo molhando também minhas mãos, com certo medo dos jacarés que grassam pelas margens arriscando mergulhos. Seus olhos brilham muito, com a percepção das lanternas na focagem que o timoneiro faz para brincar comigo, marinheira de primeira viagem, com a certeza da minha inépcia.

— O senhor não tem medo, padre? Arrisco-me na pergunta um tanto tola, logo percebi.

— Por que teria? Faço isso toda semana e, por Deus, nunca nenhum notou minha presença, disse, com um sorriso um tanto maroto para um padre.

Não sabia o que dizer. Mas continuei.

— O senhor reza missa na sede da fazenda?

— Também. Mas venho visitar uma pequena comunidade indígena que necessita de todo tipo de ajuda além das rezas e benzimentos. O sofrimento é a moeda corrente do pobre.

Nesse momento, percebi o quão débil era minha presença ali. O rio gorgolejante chicoteava com a chuva pesada que começara. Minha fé não foi capaz de sustentar o peso do pavor que tenho das tempestades. Encolhi-me toda e tentei rezar, aproximando-me mais do padre, agora na certeza que estaria protegida. Fechei os olhos.

As lanterninhas que via agora não eram mais as mesmas. Elas tremeluziam na grande árvore de Natal que, a cada ano, recebia mais luzes e ficava cada vez mais bonita. O grande pinheiro abrigava ao redor do seu tronco um lindo presépio, com suas imagens principais, a cada ano acrescida de um novo componente, um carneirinho que fosse. Rezava junto com as crianças, enquanto esperava o Papai Noel que não se esquecia de ninguém.

Nem sentia o cansaço da faina que antecedera o Natal, mergulhada nos preparativos como se fosse uma empreitada redentora. Nada escapava à minha obsessiva organização. Detalhes na decoração, nas compras, na lista de familiares... Tudo fazia, como um grande general que desse a conhecer as minudências dos seus planos a seus soldados.

— A senhora está tremendo? Perguntou o sacerdote, segurando minhas mãos enrijecidas. Abra seu coração, ele pode estar enganando o sofrimento.

Em alguma árvore, uma coruja piava, acho que de frio.

— Penso que posso ter-me arrependido dessa empreitada. Abri mão dos meus sonhos natalinos, deixei para trás todos os anos vividos, como que corroídos pelo tempo inexorável.

— Quer falar sobre isso? Não necessitamos de confessionário. A nostalgia do momento pode tê-la deixado fragilizada. As noites chuvosas são assim, tornam-nos melancólicos.

Os relâmpagos pareciam flashes fotográficos, registrando cada semblante dos indiferentes passageiros acostumados com essas tempestades. Eu, cada vez mais encolhida numa improvisada capa açoitada pelo vento, refletia sobre a decisão de fugir do agitado mundo nas cidades numa época tão especial. Não conseguia entender se queria organizar minha memória ou apagá-la.

– Essa época do ano é magica e, seja o que for, é propícia para grandes reflexões, insistia o bom homem na missão do grande pescador de almas.

— Pode ser. A melancolia está-me tornando uma pessoa egoísta. Não estou sendo capaz de trabalhar minha tristeza.  Abandonei todos os que esperavam de mim, nesta data tão especial, o necessário reforço dos elos da grande corrente familiar. Procurar a simplicidade distante do burburinho e de todos foi uma decisão difícil, mas que me fará muito bem, tenho certeza. A maturidade, a introspecção, um sentido maior à vida se tornaram meu objetivo maior, mesmo sabendo que poderia ferir alguém. Mas sentia que não tomar atitude seria morrer um dia de cada vez.

A embarcação se estendia como uma serpente azulada, agora chacoalhando menos pelo amainar da borrasca.

— Devemos florescer onde Deus nos plantou, disse o padre. E essa pode ser a grande oportunidade de fazer seu belo trabalho alhures, mitigando a fome dos desvalidos de aconchego, de amor, de entendimento. A natureza é a grande escola da vida onde não há férias. Veja, está amanhecendo. O sol que começa a despontar no horizonte pode ser o início de uma nova jornada.

Os tuiuiús, as garças pantaneiras fazem algazarra; uma capivara desliza sobre as águas. Nosso pequeno grupo desperta esfregando os olhos; a chalana apita várias vezes anunciando o final da viagem. Só então me dei conta de que não havia dormido pelo do medo da chuva e pela angústia da alma.

— Padre, disse eu, com uma voz cavernosa. Não permiti que descansasse com minhas lamúrias.

— Minha filha, eu agradeço a Deus a  abençoada oportunidade de servi-Lo e gostaria que me acompanhasse na minha linda missão do congraçamento, nesta noite tão especial que teremos logo mais.

Atracamos. No píer, os ribeirinhos aguardavam familiares e encomendas. Descemos devagar, com passos trôpegos de um corpo moído pelo cansaço da noite mal dormida.  O timoneiro segurava minha mão. Eu trazia na mochila parca bagagem, parte da simplicidade que doravante faria parte da minha vida.

O pessoal dos meus contatos na fazenda podia esperar, porque era fundamental para mim nesse momento comemorar um natal diferente.

 

 

Baseado no texto de Lygia Fagundes Telles ( Natal na Barca)