O anjo caído¹

15-12-2016 00:00

O ANJO CAIDO

 

Antes de ser lançado da plataforma dos anjos, ele ouviu a sua sentença: assumirá agora um corpo humano alado, sem deixar de ser anjo. Assim será criado e se fará homem. E como humano sentirá o passar dos anos, mas manterá a sua condição de observador como todos os anjos. Em nada poderá intervir, nada poderá modificar. Antes que retorne deverá cair muitas vezes e em cada uma delas experimentar os pecados humanos capitais. Até que o seu aprendizado tenha terminado. Tudo estava dito, e quando foi lançado bateu vigorosamente as asas, até conseguir sustentação. Assim, aproveitando-se das correntes ascendentes, foi observando todas as paisagens. Queria escolher o melhor local para pousar, um local plano, sossegado, onde pudesse repousar o corpo que começava a mostrar sinais de cansaço. Cansaço? Que sensação era aquela que até agora não havia conhecido? Afinal era anjo, era luz, era pura energia. Foi quando olhou para o seu corpo e percebeu que estava nu, que sentia frio. Sentiu vergonha e para se esconder, entrou naquela densa nuvem e práaa... bateu na montanha e foi lançado abismo abaixo, experimentando a sua primeira queda. Bem perto do fundo, ainda conseguiu bater as asas, evitando a catástrofe, sem impedir as dores no corpo depois da queda. As asas, então, ficaram com as penas esfiapadas. Mas ainda inábil ao voar, não evitou a batida de cabeça no chão e tudo escureceu. Quando acordou estava sendo levado em uma procissão, por frades que entoavam cantos gregorianos. Seu corpo, outrora nu, agora fora vestido por uma batina branca, a cor do céu. Logo reconhecido como anjo do Senhor, foi devidamente incensado e tido como mensageiro somente de boas novas. Imediatamente acorreram multidões incentivadas por boa fé e má fé, todos ávidos pelas graças de um Deus generoso que havia materializado o seu anjo e iria derramar suas graças sobre aquele povo, crente e herege. Não sabiam, entretanto, da sua condenação, da sua falta de poderes. Passaram a exigir que ele materializasse as tais graças, principalmente os religiosos, que faziam com que todos que ali acorressem, se mantivessem em fervorosas orações. Mas nenhum milagrezinho acontecia. Passaram-se os dias, as semanas, os meses e os rumores começaram a aparecer. Aquele homem não poderia ser um anjo, somente poderia ser coisa do demônio. E o que era do céu, passoua ser coisa do diabo. Quando aconteceu a seca, foi a gota d´agua. Enxotaram a pobre criatura, que não conseguira fazer acontecer nem mesmo um chuvisco. De nada lhe serviam aquele traste gorducho. Ao contrário, representava um gasto extra para o mosteiro, pois comia demais e muitas vezes somente por prazer. Quando a multidão se reuniu em frente ao convento com a clara intenção de aplicar-lhe um corretivo, ele viu que era hora de ir embora.  Apesar do sobrepeso adquirido, as asas parcialmente recompostas lhe permitiram alçar voo. O que se ouviu foi uma salva de palmas, gritos de alegria que perduraram até que ele desaparecesse no horizonte. Foi um voo arrastado, vagaroso, pachorrento. Depois de um bom tempo, já muito cansado, não conseguiu evitar a segunda queda. Na forma que foi recebido, entendeu que naquela terra distante ninguém ainda havia ouvido falar dele e de sua desventura anterior. Como da primeira vez, foi recebido como divino em uma terra sem Deus. Aí conheceu a luxúria e ao experimentar os prazeres da carne, foi desqualificado pelo rei. Imagine um anjo querer corromper a sua filha! Condenou-o a forca, mas ele conseguiu mais uma vez se salvar voando. E assim foram as outras quedas quando conheceu a avareza, a ira, a soberba e a vaidade. Muitos anos se passaram desde a primeira queda. Faltava ainda conhecer o ultimo pecado capital. Seu corpo humano já era velho quando empurrado por um vendaval, precipitou em nova queda.

“A luz era tão fraca ao meio‑dia que, quando Pelayo regressava a casa depois de ter deitado fora os caranguejos, teve dificuldade em ver o que era que se movia e gemia no fundo do pátio. Teve de aproximar‑se muito, para descobrir que era um homem velho, que estava caído de borco no lodaçal e que, apesar dos seus grandes esforços, não podia levantar‑se, porque lho impediam as suas enormes asas.”

“Assustado por aquela visão aflitiva, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava a pôr compressas ao bebé doente, e levou‑a até ao fundo do pátio. Ambos observaram o corpo caído com um silencioso pasmo. Estava vestido como um trapeiro. Não lhe restavam mais do que uns fiapos descoloridos no crânio pelado e pouquíssimos dentes na boca, e essa lastimosa condição de bisavô ensopado tinha‑o desprovido de qualquer grandeza. As suas asas de abutre velho, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas para sempre no lodaçal.”

“Chamaram, para que o visse, uma vizinha que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela chegou‑lhe um olhar para tirá‑los do engano”.

‑ É um anjo ‑ disse‑lhes. ‑Com certeza vinha por causa da criança, mas o desgraçado está tão velho que a chuva o fez cair”.

“Os mais simples pensavam que seria nomeado alcaide do mundo. Outros, de espírito mais austero, supunham que seria promovido a general de cinco estrelas, para que ganhasse todas as guerras. Alguns visionários esperavam que fosse conservado como reprodutor, para implantar na Terra uma estirpe de homens alados e sábios que se encarregassem do universo”.

Ah não, pensou mais uma vez o anjo. Tudo voltaria a se repetir, como de todas as outras vezes. Deixou-se ficar a um canto, imóvel. Não queria mais ter forças para nada, apenas exercitar a sua preguiça. Somente não entendia o porquê de seu silêncio causar tanto barulho.

“Uma manhã, Elisenda estava a cortar rodelas de cebola para o almoço, quando um vento que parecia do alto mar se meteu na cozinha. Então assomou‑se à janela e surpreendeu o anjo nas primeiras tentativas do voo. Eram tão desajeitadas que abriu com as unhas um sulco de arado nas hortaliças e esteve quase a deitar abaixo o alpendre, com aqueles adejos indignos que escorregavam na luz e não encontravam apoio no ar. Mas conseguiu ganhar altura. Elisenda exalou um suspiro de alívio, por ela e por ele, quando o viu passar por cima das últimas casas, sustentando‑se de qualquer maneira com um agourento esvoaçar de abutre senil. Continuou a vê‑lo até ter acabado de cortar a cebola, e continuou a vê‑lo até quando já não era possível que o pudesse ver, porque nesse momento já não era um estorvo na sua vida, mas um ponto imaginário no horizonte do mar”.

Depois que alçou voo queria voar o mais alto possível, pensando, assim, alcançar a plataforma dos anjos. Mas estava tão velho que bastou uma brisa suave para que fosse arremessado de volta. Foi descendo devagar e aos poucos conseguiu pousar naquela praça deserta. Deitou-se no banco e logo foi abordado por alguém que lhe ofereceu uma coberta insuficiente para aquela noite de inverno rigoroso. Ateu e testemunha de tantas coisas estranhas, seu benfeitor não se incomodara com as suas asas do céu. Na manhã seguinte um anjo todo branco foi visto subindo ao céu. No banco da praça jazia um corpo a sepultar. Sem as asas.

 

 

¹ Exercício que reve como mote conto de Gabriel Garcia Marques: "Um senhor muito velho com umas asas muito grandes". Estávamos estudando semelhanças entre contos populares e contos canônicos.