O bilhete premiado - Remix

14-04-2015 15:33

Na vila do Capão do Meio a vendinha do sr. Teodoro  ficava cheia aos domingos. Ali se vendia de tudo: alimentos variados, temperos, fumo de corda, inseticidas, querosene para lampiões, fósforos, cigarros, pilhas e com a modernidade cartões para recarga de celulares. Durante a semana aqueles gatos pingados de gente faziam comprinhas mínimas emergenciais; para as maiores chegavam até a cidade mais próxima. Mas aos sábados e domingos o movimento fervia. Os bancos e mesas  improvisados  ficavam apinhados de gente em sua maioria homens. Ali, as conversas rolavam soltas entre um cigarrinho de palha e uma golada de aguardente. Falavam  desde os problemas de casa, inflação, preços dos commodities ( nome difícil mas na prática entendiam) e até arriscavam alguns assuntos proibidos com aquele estilo boquirroto cheio de maldade. Chegavam em casa à tardinha meio grogues com os vários goles que queimavam a garganta fazendo aquele ruído característico de quem passou da conta. Esses eram os finais de semana e a diversão favorita de quem não tem outra ou nenhuma opção de lazer. As mulheres ficavam em casa, bordando, costurando   ou visitavam alguma comadre.

Ao lado do pequeno armazém havia um minúsculo cômodo onde se podiam pagar algumas contas, carnês, também comprar bilhetes de loteria. Muitos tentavam a sorte e depois ficavam discutindo a validade dos mesmos, ou porque consideravam coisas do Demo ou  porque tinham certezas de que havia falcatruas nos resultados. Mas, por sim por não, arriscavam, quem sabe um dia.

Ivan Dmítrich Raimundo, para os íntimos somente Raimundo, (não gostava do nome pois tinha certeza que o pai havia visto em uma bula de remédio ou no periódico onde vinham embrulhadas mercadorias) era um senhor de estatura mediana, meio calado, fazia parte desse pequeno grupo. Dono de uma pequena gleba, costumes simples com seu borzeguim  velho, calça de mescla descorada, camisa xadrez surrada. Na algibeira, a palha de milho, o canivete para cortar o fumo, a velha binga e alguns trocados. Não era dado a jogos pois para ele só traziam discórdias. Vivia com sua mulher Zezinha, em harmonia com seus filhos. Com a colheita do algodão faziam as despesas maiores, também criavam porcos e galinhas, estes  somente para o consumo. Naquele domingo especialmente, já meio goró, sr. Raimundo, quase na hora de se retirar lembrou do recado de sua mulher:

_ Não se esqueça de pegar o resultado da loteria. Ela  fazia o jogo vez em quando, meio às escondidas, com o dinheiro da venda dos ovos que “gentilmente” o marido deixava para que ela gastasse com suas preferências.

Ao lombo de seu pangaré seguiu a pequena viagem, cantarolando antevendo a bronca pelo adiantado da hora.

Mal atravessou a soleira da porta e a pergunta:

_ Viu o resultado que pedi?

_ Vi sim. Tirou do bolso o amassado bilhete, como amassada estava sua cara pelo efeito etílico. Se você pagou direitinho vamos conferir. Aqui está ele.

_ Qual é o número?

_ A série é 8377, bilhete 62.

Raimundo não acreditava em sorte, o pouco que tinha era por conta do trabalho árduo e, apesar de cético, achava que jogo trazia azar, era mesmo coisa do demônio. Bem, mas agora que estava com o bilhete nas mãos não custava conferir, mesmo porque se não o fizesse estava frito.

Olhou devagar, ficou estarrecido com o que viu. Sentiu até dor de cabeça, chegando a soltar das mãos o bilhete . A sensação era difusa: alegria, esperança, desconfiança.

_ Zezinha,  O resultado é esse.

_ 8377? _ Perguntou Zezinha que  atabalhoada quase deixa cair o prato com a refeição que acabara de requentar para o marido.

_É verdade…É verdade. Mas faltava o número ainda, apesar de a série conferir.

_ E o número? Não me deixe nessa agonia.

Dmítrich  OLHOU PARA A MULHER E SORRIU NUM SORRISO LARGO E APALERMADO COMO UMA CRIANÇA A QUAL TIVESSEM MOSTRADO ALGUMA COISA BRILHANTE. A MULHER TAMBÉM SORRIA. SENTIA O MESMO PRAZER QUE O MARIDO POR ELE   TER LIDO  SOMENTE A SÉRIE E NÃO TER TIDO A PRESSA EM SABER O NÚMERO DO FELIZ BILHETE. É TÃO DELICIOSO, TÃO ANGUSTIANTE CONSUMIR-SE E ESPICAÇAR-SE NA ESPERANÇA DE UMA FELICIDADE POSSÍVEL! (1)

Sem pressa, Raimundo antegozava o que estava prestes a saber. Quis degustar o momento como uma comida deliciosa passeando por entre a língua agora faminta. Olhavam-se pálidos, riam, e sorviam a delícia do momento como se um sorvete fosse  que podia derreter caso o número não conferisse. Mas faltava pouco e 75 milhões já traziam a felicidade da quase certeza sem a coragem de conferir o restante.  

_E SE TIVERMOS GANHO? _ DISSE. _ SERIA UMA VIDA NOVA, UMA CATÁSTROFE! O BILHETE É SEU CLARO, MAS SE FOSSE MEU, ANTES DE MAIS NADA, NATURALMENTE EU COMPRARIA ALGUM IMÓVEL, ALGO COMO UMA PROPRIEDADE, NO VALOR, DE, DIGAMOS 25 MILHÕES; DEIXARIA UNS 10 MILHÕES PARA AS DESPESAS EXTRAS: UMA VIAGEM...PAGAMENTO DE DÍVIDAS E ASSIM POR DIANTE. OS 40 MIL RESTANTES COLOCARIA NO BANCO PARA RENDER JUROS...(2)

A mulher sorria satisfeita, mas ele nem percebeu, pois de olhos abertos já se via fazendeiro, respeitado nos leilões de gado nelore. Dono de touros campeões, que exibia nos rodeios. Carro do ano para a esposa, sua caminhonete importada fazia inveja aos amigos. Os filhos com roupas de grife desfilavam no colégio particular e nas baladas. A fazenda com heliporto promovia festanças, trazendo artistas famosos do mundo sertanejo que ele tanto queria ter conhecido e que agora, em sua companhia, tomavam caras  bebidas  ao som de modas arrancadas na viola enluarada. À tarde na rede seu trabalho era conferir o caixa e entendia como ninguém sobre bolsas de valores. Zezinha sem perceber pensava pequeno, somente em uma propriedade para chamar de sua.

Raimundo continuava o sonho acordado e nele via passar as estações do ano com suas peculiaridades. A primavera florida, o verão abrasador, o outono monótono e o inverno chuvoso e melancólico. E, desperto, comentou com a esposa, absorta em seus pensamentos.

_ Sabe Zezinha, gostaria muito conhecer o estrangeiro, ou melhor por que não comprar uma fazenda no Texas? Já imaginou recebermos a visita de Xitãozinho e Xororó? Podemos transitar entre os dois países sem nos preocuparmos com dinheiro. Sabia que o bilhete não era dele, mas ela tinha mentalidade tacanha tendo  certeza que seria o dono da situação.

Sua mulher pensava, não tinha sonhos, estava envelhecida, há muito não se cuidava mais e ele vaidoso sempre (assim se achava) já antevia uma nova esposa. Também, para que ela conhecer outros lugares se nunca havia saído dali? Tinha ainda a questão da família chupim, que ela  fazia questão de paparicar.

IVAM DIMITRICH PENSOU NA PARENTELA. LOGO QUE TODOS ESSES IRMÃOZINHOS, IRMÃZINHAS, TITIAS, TITIOS SOUBESSEM DO GANHO, VIRIAM SE ARRASTANDO, BANCANDO OS MENDIGOS, SORRINDO SUNTUOSAMENTE, BAJULANDO. ETA GENTINHA SÓRDIDA! SE LHE OFERECEM A MÃO, PEGAM O BRAÇO. SE NÃO LHE OFERECEM, AMALDIÇOAM, ROGAM PRAGAS, DESEJAM TODO TIPO DE DESGRAÇA. (3)

Seu pensamento agora já mudara. Foi crescendo dentro dele uma sensação de desconforto; imagens ruins tomaram conta do seu ser. Via a mulher com desdém, não a queria em seus sonhos nem à família peçonhenta. Sua imagem como patchwork de memórias ruins fê-lo odiar a mulher e, no íntimo, já não tinha certeza se queria mesmo que  desse o número tanto sonhado, fazendo questão de soletrar com força.

_Série 8377, bilhete 26 e não 62!

Prostraram-se na rude  cadeira, ambos desalentados. Amor e ódio misturados.  Lembraram-se de imediato da fábula que haviam aprendido na escolinha rural. A MENINA DO LEITE e se identificaram de pronto. Sonharam demais e antes da hora.

Refeitos, abraçaram-se e entenderam que a felicidade estava ali naquele lugar, e que tinham sido feitos um para o outro.

Reforçando a ideia que o jogo não era coisa de Deus e estavam na Semana Santa, se lembraram do pequeno Menino nascido na manjedoura simples, rodeado de animais. Oraram juntos, agradecidos à Deus pela oportunidade do aprendizado,, onde  o dinheiro é importante mas não tudo e entenderam a mensagem do valor à união da família.  

 

Exercício Oficina 2 - Março 2015