O menino Feliz
O MENINO FELIZ*
Doutor, doutor, venha correndo. Ele não está passando bem. Tinha ainda três pacientes para atender, mas deixou-os e correu para atender ao chamado. No caminho foi trazendo para a sua lembrança tudo o que havia presenciado nos últimos meses, quando ousou desafiar Deus e não deixar que aquela criança morresse. Ha muito tempo já acompanhava a batalha de Marisa em sua teimosia pela vida. Para a mãe foram muitas noites em claro, foram muitos dias em prantos. Foram muitas nuvens que se transformaram em lágrimas. O seu bebê que lhe dera tantas alegrias, depois dos primeiros sintomas da doença, continuou lhe dando alegrias por cada dia de sobrevivência. As vitórias foram outras e quando pensava que não tinha mais forças, continuava caminhando com novas forças que até então desconhecia. E ainda carregava o filho nos braços. Esta luta o médico presenciou uma parte, o restante lhe contaram. Eram poucos os seus lamentos, como por exemplo, quando ela lhe disse de seu pressentimento de que a barganha que havia proposta para o anjo, não estava sendo aceita. Quando ele perguntou qual seria essa barganha, ela disse que queria trocar a sua vida pela vida deste menino. Dizia que a dor maior que muitas vezes havia passado pela sua porta, agora teimava em entrar. Mas desde a primeira visita, ele já sabia que esta seria uma luta inglória. As batalhas seriam muitas, a vitória não viria. Quando chegou a casa, aquele anjo já começava a partir. A sua respiração era curta, suave, aquele sorriso ainda estava ali. O mesmo sorriso que emprestava a todos que se diziam tristes. Nunca o havia ouvido reclamar de nada. Tentou aplicar-lhe um medicamento, fez massagens, mas ele disse em voz baixa, ainda infantil, “mamãe, não chore, eu ainda sou feliz porque eu amo você”. Em seguida seus olhos se fecharam. Para sempre. O médico se afastou, não eram mais necessários os seus cuidados. Marisa debruçou-se sobre o menino e quando todos esperavam que chorasse, levantou os olhos e agradeceu cantando assim:
Meu menino feliz
Fique no meu aconchego
Para partir, é o que o anjo lhe diz
Mas você ainda tem o meu chamego.
Não se esqueça meu amor
Não deixe para depois
Se um dia você se for
A passagem é para dois.
Meu lindo não adormeça
Vamos juntos cantar
Esta canção de ternura
Este canto de ninar.
O seu cavalo de sonho
Espera o seu cavalgar
Agora vejo você tão risonho
Sem pressa a se afastar.
Peça a Deus para ficar
Com ele você pode falar
Diga de mim e de nós
Que queremos nós dois a sós.
Meu menino feliz
Fique no meu aconchego
Para partir, é o que o anjo lhe diz
Mas você ainda tem o meu chamego.
Não se esqueça meu amor
Não deixe para depois
Se um dia você se for
A passagem é para dois.
Nas asas do meu sofrer
Eu só quero lhe abraçar
Cair nesse abismo não é morrer
Você me ensinou a voar.
Perdoa-me vida tênue
Agora nada mais lhe dou
Você só precisa do meu silêncio
Fica aqui quem tanto o amou.
O canto era suave, terno, falava de amor, de agradecimento e de espera pelo dia em que ainda iriam se encontrar. Enquanto cantava, todos choravam. O médico também. Ele não entendia toda aquela força interior, ninguém entendia. O menino entenderia. Provavelmente iria lamentar, apenas, que ele que havia recebido tanto amor, agora seguia de mãos vazias.
*Exercício extra