Prima Elvira no Brasil

23-09-2014 16:45

 

Um rápido retrospecto sobre a relação entre mim e minha prima Elvira. Ambas nascemos em Berlim, capital da Alemanha. Porém, no fim da guerra eu e minha família fugimos para o sul do país, o que Elvira não conseguiu. Foi construído o famoso muro de Berlim, separando a parte ocidental (democrática) da parte oriental (comunista), de onde não se conseguia nenhuma informação. Após 42 anos de separação , em 1983, finalmente encontramos nossos endereços e trocamos correspondência com fotos. Em suas cartas iniciais, ela queria saber o que significa em alemão "Rio" e "Claro". Ela queria saber a posição topográfica e a altitude  da cidade. Quantos habitantes somos e qual é o "ganha pão" aqui. Devo confessar que saí com o carro para observar  corretamente  a  "circunferência"  de nossa  cidade e poder descrever  tudo detalhadamente. Na resposta ela queria saber onde fica o rio que não aparece em nenhuma foto recebida. Elvira contou-me que leu um livro descrevendo  a construção da rodovia "Transamazônica" e imaginou nossa região semelhante.

Mas só trocar cartas não bastava, queríamos rever-nos após tão longos anos de separação.  Ela  morando num regime totalmente controlado pelo governo, dirigiu-se ao departamento responsável e após contar nossa historia, pediu permissão para viajar para o Brasil. Este pedido foi negado  porque na opinião das autoridade sovieticas, eu morava no capitalismo e não teria nenhuma dificuldade para viajar até Berlim e reencontrar minha prima. Mas Elvira insistiu para conseguir licença de sair de Berlin, para festejar meu 50. aniversário em 1986, que na Alemanha é respeitado como " Bodas de Ouro "  da vida. Alegando que eu me casei com brasileiro e gostaria de apresentar todos novos parentes que ganhei com meu casamento. Finalmente os "barnabés" de lá cederam e eu recebi um formulário que deveria preencher e reconhecer firma, aceitando toda responsabilidade da estadia dela em nosso país e garantindo que ela voltaria para Berlin  ao invés de fugir...

Com o formulário preenchido, dirigi-me ao nosso cartório e explicando o caso para a escrivã, que era minha amiga, consegui preencher o dito formulário com todos os carimbos lá existentes, alem o de reconhecer firma, e assim Elvira conseguiu, com passagem comprada por nos aqui, vir ao Brasil. Reencontro realmente emocionante!

Elvira adorou nossa casa espaçosa com muito jardim.  Todos os dias usávamos  piscina e sauna. Elvira nadava muito melhor que eu,  pois quando jovem,  participava de campeonatos. Nosso arroz com feijão foi muito estranho para ela, já que o prato básico na Alemanha é batata e suas variantes.  Mas após pouquíssimos dias ela pedia  arroz, feijão com farofa, molho de pimenta, muitas verduras e frutas, carne não, pois era vegetariana...

Como nossos estilos de vida eram totalmente diferentes, conversamos muito, mas o que eu perguntava sobre a guerra, ela respondia só mente com palavras evasivas, nada concreto. Guerra tornou-se tabu, tanto para ela como é para mim.

 A vida no comunismo foi  sem grande reconstrução do pais ou desenvolvimento   e crescimento do modernismo  que aconteceu em nossa democracia. Ela contou a parte positiva do regime:  Todos tem moradia fornecida pelo governo. Tem cesta básica, assistência medica e escola para os que querem estudar, tem emprego dentro da profissão de cada um. Porem no dia do pagamento, sobre  tudo que o governo "dá" ,  bem como luz, água, aquecimento e telefone, é debitada uma cota,  assim sobra muito pouco  do salário. A liberdade era limitadíssima, tanto material quanto oral "Cala-te boca"  era o lema do povo, todos tinham medo de ser rebaixados profissional e salarialmente, alem de ir preso e ser deportado para Sibéria para trabalhos forçados nas minas, com temperaturas quase sempre  muito abaixo de zero graus... E, por isso,  o óbito das pessoas acontecia muito mais cedo, poucos chegavam aos 45 anos...

Qualquer religião  era totalmente proibida. Todas as igrejas foram trancadas. Tudo que nos consideramos espiritualidade e rogamos a Deus, no comunismos tinha que ser pedido ao governo.  Após a derrubada do czarismo, através do  assassinato do ultimo czar Alexandre II, no inicio do comunismo, os lideres Lênin e depois Stalin recebiam  os pedidos que nos fazemos a Deus e a família sagrada. Desta forma Elvira era ateu. Na sua opinião, a vida é apenas vida e termina na morte, não tendo nada após o passamento. Mas, eu, como católica, mensalmente na  data de  seu  falecimento, durante o primeiro ano, deixava seu nome no altar para que a missa também fosse dedicada beneficamente a sua alma.

Acho que umas das poucas leis respeitadas era a "junção de família".

Conseguir comprar um carro  "Trabant", marca única  existente, exigia inicialmente a inscrição  numa lista de espera com a obrigação de mencionar para que o carro seria usado.  As autoridades   determinavam quem receberia o carro primeiro, eram os médicos, mães com crianças pequenas, vendedores ambulantes, etc.. Durante o tempo de espera, cada inscrito tinha que pagar a mensalidade (como nosso consorcio). Elvira  precisou esperar mais de três anos.

Profissionalmente ela era pesquisadora das origens  musicais no mundo e também  coordenadora das orquestras Sinfônica e Filarmônica na " Casa de Ópera " ,  em Berlin ...

Elvira  vivia sozinha com os 2 filhos,  o ex-marido conseguiu fugir ha muitos anos e morava em "Colônia", Alemanha ocidental, para onde ele conseguiu trazer o filho mais velho por ter conseguido uma bolsa de estudos. A noiva, não era permitido  levar, ficou na casa de minha prima. 

Muitos meses depois ele, Marian, conseguiu em "Colônia" licença para casar . Mas foi-lhe imposto pelo lado oriental o prazo de apenas um dia, ou seja 12 horas de permanência no lado comunista. Não cruzando a fronteira de volta , ele ficaria preso novamente no comunismo e perderia o seguimento na universidade.  Alegremente ele comprou as alianças e de carro dirigiu-se para Berlin oriental  para casar. Ao chegar no posto da fronteiro entre as duas Alemanhas,  ele e seu carro  foram minuciosamente revisados a   procura   de coisas "proibidas". O par de alianças  foi confiscado por tratar-se de objeto de ouro, altamente valioso. Não adiantaram os documentos provando que ele estava indo para seu próprio casamento. Chegando em Berlin, os noivos, a mãe e as testemunhas foram ao cartório  realizar o casório. Depois, para comemorar, almoçaram num restaurante qualquer, sem reserva antecipada. Em seguida os noivos dirigiram-se ao hotel mais próximo para lua de mel, que durou apenas 1 1/2 ou 2 horas, porque chegou a hora que ele tinha que voltar.  A noiva, em posse da certidão de casamento,  após alguns meses, obteve a permissão de seguir o marido...

O filho caçula também era noivo, mas precisava casar mais depressa, pois o herdeiro estava a caminho. Elvira foi até a autoridade competente e pediu troca de seu apartamento grande   por 2 pequenos. Obteve a troca de pronto, porque "quem casa, quer casa" Ela separou seus moveis e assim mobiliou as duas moradias. Mas no dia do casamento ela não foi nem a igreja, nem a festa, pois era o dia de embarcar para o Brasil  e rever-me.

Este filho, Torsten, também conseguiu deixar o lado comunista , depois o pai conseguir-lhe também uma bolsa de estudos  e como ele já era  casado e tinha um filhinho,  a família junta foi para "Colônia", onde Torsten  tornou-se  engenheiro  petroquímico.

Ela desembarcou de madrugada e fomos para casa. Meu marido entrou no posto "Castelo". Elvira, pasma, observou a lanchonete onde ela tomou suco de laranja fresco de verdade e que ela pude ver ser feito. Depois visitamos a loja de conveniências, ela só admirava tudo, não acreditava que tinha tantas ofertas num só lugar.  A amplitude do banheiro ela achou inacreditável. 

 No dia seguinte, disse-lhe que iríamos conhecer o centro da cidade. Durante o café, ela perguntou se poderíamos ir primeiro a policia? "Que você quer fazer na policia?" perguntei curiosa."Para cadastrar-me que já cheguei" foi sua resposta. Expliquei-lhe que aqui vivemos livres.

São Paulo para ela foi inacreditavelmente bela, ela nunca tinha visto tantos arranha-céus tão altos  e tão pertos um ao outro, só em fotos. Os Shoppings, a quantidade de escolha das mercadorias, tudo  foi admirado por ela. Ela contou-me que no comunismo não havia muita escolha, quando uma caixa de mercadoria chegava perto das prateleira onde deveria ser exposta, as donas de casa se aproximavam e "esvaziavam" a caixa ali mesmo...

Almoçamos em restaurantes requintados, ela ficou de boca aberta, pois as palavras de admiração fugiram-lhe,  a diversidade do cardápio para ela foi demais.  Lá só tinha 2 ou 3 opções para escolher...

Lembro de um dia no qual fomos visitar um primo de meu marido que fazia parte da cúpula de nossa prefeitura. Claro que eu era a tradutora instantânea. Em certo momento  surgiu à pergunta sobre a administração  governamental  comunista. Elvira pediu desculpas, mas não respondeu...Ela ficou com medo que outro eventual turista da parte comunista, como ela,  pudesse  também estar na cidade e alguém que ouviu de nosso primo as  "noticias sobre o comunismo", lhe passasse a informação e assim, Elvira, ao chegar de volta a Alemanha, seria presa  no aeroporto mesmo.

Meu marido não era colecionador, mas gostava de ter uma nota de dinheiro de lugares que conhecíamos. Assim ele pediu uma nota de apenas um marco (moeda da época) . Pedindo desculpa, Elvira disse que não poderia dispor de nenhum centavo , pois  a Policia Federal no embarque, tirou-lhe a carteira e deixou tão só mente o necessário para ela poder voltar de taxi  até a casa dela, o excedente foi tirado  e seria devolvido após seu regresso .Tampouco ela aceitou uma nota de nosso dinheiro, pelo mesmo motivo...

Que diferença entre comunismo e democracia . Ainda bem, que foi extinto!

Lembro-me do dia que a levamos para o Litoral Norte.  Em"Parati"  ela viu o mar pela primeira vez na vida, com 55 anos. Mas em "Parati", em minha opinião, o mar é bastante "emoldurado"por barcos  e não mostra seu grande potencial e não aceita banhistas. Elvira gostou, mas admirou mais a igreja e o calçamento antigo, desde o tempo dos escravos, bem como a arquitetura  portuguesa (?).O que ela adorou foram os artesanatos. Comprou vários e apaixonou-se por uma"carranca" esculpida manualmente em madeira (usada antigamente na frente dos barcos e navios  para espantar os maus agouros.)  tão grande, que  não coube em sua mala, mas levou-a na bagagem de mão. Também ficaram na memória os hotéis de "Parati" construídos em pedras  naturais, com flores. Seguimos para entre "Ubatuba"  e "Caraguá", hospedando-nos num hotel a beira mar. Acho que foi aí que Elvira  prestou total atenção à potencia do mar. Aquelas ondas grandes vindo e indo devem tem impressionada,  pois eu entrei na água só mente até o joelho. Chamei, mas como resposta, ouvi:"Já vou" mas não veio.  Voltei e Elvira me disse que ela gostaria de pisar nesta areia  tão fininha e gostosa.   Recomendei-lhe que marcasse bem a localização do hotel. E lá foi ela, toda contente. Passaram-se 3 horas e nada de Elvira , começamos a preocupar-nos...mas finalmente, lá vinha  ela , chapéu abanando,   sandálias na mão e "suando bicas". "Ah, que delicia, que natureza linda. Andei tanto e esta areia branca massageando meus pés.  Não foi mais longe porque acabou a enseada ."  Notei que, apesar estar vestindo maiô, ela estava seca. Durante 2 dias de nossa estadia neste hotel, só consegui que ela molhasse os pés, andando na água rasa.Ela sentiu medo da potencia do mar, apesar de  que nadava muito bem. Não perguntei, respeitando-a...

Na viagem de volta,  meu marido comprou à beira-estrada,  um cacho grande de bananas ouro.Colocou as bananas na parte de traz do carro, no chão, ao lado de Elvira.Como estávamos com ar condicionado ligado  as janelas estavam fechadas , Elvira me perguntou, se poderia pegar uma folha de jornal para colocar  a  casca  de banana . "Que delicia de bananinha, nunca vi tão pequena assim,  posso comer mais uma"    "Mas claro que sim, quantas  você quiser" respondi-lhe. Viajamos  falando pouco, mas deliciando-nos com a musica do K7 de musicas clássicas,  tipo populares mundiais. Chegando em casa, após Elvira descer, abri a porta traz eira do carro e levei um susto. O jornal sustentava uma  verdadeira montanha  de cascas e o tronco do cacho estava "pelado". Descobri que Elvira era um "macaquinho" e não deixei mais faltar bananas  na fruteira.

Depois ter sentido como é, viver em liberdade, ela disse que iria pedir "junção a família" e mudaria também para "Colônia" onde estavam marido e filhos. Após 2 anos ela conseguiu a liberação do comunismo,  mas neste período ela foi 2 vezes rebaixada no posto de trabalho e salário,  Ela teve que trabalhar  na chapelaria do teatro,  guardando os chapéus e casacos dos frequentadores do teatro, onde o salário se compara, para-nos, a uma gorjeta.  Sua mudança para "Colônia" aconteceu em 1988 , exatamente 1 ano antes da derrubada do muro de Berlin.

A partir daí, sempre nos encontrávamos, ora aqui no Brasil,  ora na Alemanha.