Reminiscências

06-08-2012 17:28

Narrativa escrita em resposta às oficinas teóricas de Março/abril

 

Estamos em 1942. Lá fora o ar gelado cobre os cafezais com um manto branco de gelo. Cá dentro, uma jovem mulher se contorce em trabalho de parto. Vai ser menino, torce. E pensa: vai formar um lindo casal com a irmãzinha. O tempo passa. Quando o sol finalmente faz brilhar as gotas geladas de orvalho anunciando um novo dia, a jovem vê surgir seu novo rebento. O casal mal disfarça sua decepção. O filho tão esperado era uma menina, poucos fios de cabelo na cabecinha branca como a geada lá fora. Assim eu vim ao mundo. Era 28 de setembro.

Nos meus primeiros anos de vida, a lembrança que me vem é a da velha casinha de madeira, cujas frestas deixavam passar o brilho intenso dos raios em noites de tempestade, fazendo com que o barulho ensurdecedor dos trovões fosse mais assustador ainda. Foi nessa época que o conheci: o medo, que me acompanha até hoje em minha caminhada.  

Não fosse ele, o projeto de construção de minha vida teria sido simples. A saída do sítio para a cidade, as brincadeiras nas ruas de terra batida, a casa sem luz elétrica e desprovida de qualquer conforto, a água retirada do poço, as verminoses, conjuntivites, berebas e todas as doenças comuns da infância, mas também o aconchego da grama verdinha nas noites enluaradas e salpicadas de estrelas, as balas de tostão que o nono trazia da venda, as missas todos os domingos...

Como é gostoso o cheiro da infância. Pena que com ele contraste o odor da morte que, com seu ceifador afiado, levou de maneira trágica e prematura meu querido nono. Que dor! Como, nos meus oito anos, entender que alguém possa desistir da vida? Minha mãe, a me consolar, dizia: “o sol brilha quando a lua vai descansar. Isso acontece todos os dias. Outros dias virão, trazendo o esquecimento e, com ele, o conforto para sua alma”. Os dias foram se sobrepondo e eu fui buscando novas cores para pintar a vida que continuava. Ficou a lembrança de quando eu o ajudava a raspar os grãos dos ramos de vassoura que ele montava para vender. As alergias no corpo provocadas pela poeira me incomodavam, mas permitiram que eu já bem cedo valorizasse o trabalho.

Revirando o arquivo de minha memória, vem-me à boca o gosto de saudade no sabor da carne de porco armazenada na grande lata com gordura num tempo em que não havia geladeira, na lição de anatomia de meu pai enquanto dissecava o porco criado no quintal. Sinto também o gosto da saudade na bolachinha de polvilho, na polenta brustolada (aquecida na chapa, para os não iniciados no italianês). Ah! E no gosto do pudim de queijo assado na panela de ferro coberta por uma placa com brasas, tática de quem dispunha apenas de um fogão a lenha desprovido de forno. Agora era a pipoca, a encher uma grande bacia e nossa imaginação, nas figuras que formavam.

Aos sete anos conheci a escola primária, onde a pata nada e a macaca é má. Distante de casa, o longo caminho até ela era percorrido a pé, mas eu nem sentia, perdida nos meus pensamentos de menina. Ao evocar as lembranças, vêm-me à mente o delicioso aroma da sopa quentinha servida na escola e as gostosas gargalhadas dos meninos, tentando soltar dos dentes o quebra-queixo comprado no carrinho do pipoqueiro. Pena que tanto a sopa como as guloseimas do final das aulas eram coisas que me pertenciam apenas naquelas raras vezes em que mamãe me dava alguns tostões para o lanche, já que tudo era pago.

Nessa época, meu tempo livre era ocupado com as obrigações da escola, mas também com o cuidar dos irmãos menores e, ainda, em levar o almoço de papai, que trabalhava longe e não tinha tempo para vir tomar as refeições em casa.

Ir ao serviço de papai era meu passeio diário e minha aventura particular. Sempre em companhia de meus irmãos menores, o trajeto era feito pelo caminho dos trilhos da velha Noroeste do Brasil. No caminho, ia apanhando uma ou outra fruta dos galhos das árvores que pendiam para fora dos quintais. Isso, quando não parávamos para colocar o ouvido sobre o trilho do trem tentando ouvir a chegada de algum comboio, à moda mocinhos dos filmes de índio americanos de que apenas ouvíamos falar. Esse percurso, aliás, era-nos bastante conhecido, pois era o mesmo que usávamos para levar e trazer roupas de uma cliente para nossa mãe lavadeira.

Mesmo com todas as dificuldadesde uma família extremamente pobre, eu era uma menina feliz. Por serem raros, os esporádicos passeios eram considerados verdadeiros presentes. Mesmo que eles se resumissem a visitas aos tios sitiantes, numa época em que predominava o plantio do café. Brincava no cafezal em flor,que mais parecia uma fileira de noivas perfumadíssimas.O mandiocal era meu lugar preferido. Saíamos à procura de ovos botados pelas galinhas. Encontrando, fazíamos dois pequenos furos, com o cuidado para não romper de todo a casca. Ali mesmo sugávamos todo seu conteúdo e devolvíamos o ovo vazio no lugar, para ninguém perceber. Nem mesmo as galinhas.

E tinha a missa do domingo, essa sim, obrigatória. E os eventos especiais, como a procissões e o Domingo de Ramos. Lembro-me bem deste por causa das folhas de palmeira trançadas pelas mãos hábeis de papai. E lá íamos nós, tranças de palmeiras à mão, curtindo o doce e suave aroma das folhas.

E assim minha infância foi sendo consumida pelo inflexível calendário. E no entremeio, a parreira carregada de lindos cachos de uvas, o jardim da frente da casa, com suas rosas e margaridas, as prosas nos finais de tarde, as reinações com os irmãos e os amiguinhos da vizinhança, as lanternas de vagalumes presos em vidros transparentes, os girinos pegos nos córregos que passavam próximos a casa,os pés escalavrados, as roupas desgrenhadas... Mas sempre o sorriso feliz de quem não pensava em nada.  

Na contagem do tempo, sete anos se passaram desde a conclusão do curso primário. Período em que me dediquei apenas aos cuidados com a casa e aos folguedos com as amiguinhas do bairro, já que o ginasial (que atualmente ao segundo ciclo do primeiro grau) era oferecido apenas em períodos diurnos, inacessíveis para mim, consideradas minhas obrigações domésticas. Eu já contava dezesseis anos quando a oferta de ensino em períodos noturnos abriu para mim a oportunidade de continuar os estudos. Mas, para tanto, precisava submeter-me à obrigatória prova de admissão ao ginásio. Depois de tanto tempo longe dos livros e cadernos, era um desafio para mim, que exigiu muito estudo nas horas em que as obrigações domésticas me davam uma folga.

O esforço valeu a pena. Finalmente, de novo os bancos da escola, no tão sonhado curso ginasial. Mas o sonho tão acalentado de alçar voos maiores foi novamente abalado. O medo, meu companheiro inseparável, fez-se novamente presente. Dona morte veio para levar prematuramente minha mãe, deixando órfãos seus seis filhos. Mesmo com a asa quebrada pela fatalidade, que me fizera cair muitas vezes, perseverei em voar mais alto. Conheci mais profundamente o Evangelho de Jesus na codificação de Kardec, o que amparou meus passos trôpegos. 

Porém, mesmo com os percalços, esse difícil período teve também seus encantos. A juventude é assim, cheia de magia. E no tear da vida, pus-me a ver o mundo do lado em que o sol brilha com mais claridade, focada num futuro que eu previa cheio de transformações. Novas descobertas. O orgulho do uniforme azul e branco obrigatório no Instituto de Educação e o contato com um mundo novo através das várias disciplinas e de muitas leituras deram-me novo alento e ampliaram meus horizontes.

A leitura de fotonovelas em um mundo sem televisão, o encontro com novos amigos que meus irmãos traziam a frequentar nossa casa, o passeio na Praça Getúlio Vargas quando vagava alguma aula, as brincadeiras dançantes nas residências, esse era meu novo mundo. Um mundo habitado por Trio Los Panchos e Altemar Dutra que, com seus boleros inesquecíveis, nos convidavam a dançar com os corpos muito juntos, um calafrio percorrendo a espinha. Depois, o primeiro baile de carnaval, o curso de datilografia, o primeiro emprego, a primeira cirurgia, o primeiro amor...

Os passeios domingueiros na Praça Rui Barbosa, onde as saias muito rodadas com anáguas de rendas realçavam a cintura muito fina e atiçavam os olhares dos flertes numa cumplicidade deliciosa. Depois, os vestidos tubinho, os cabelos presos num coque volumoso, influência da bossa nova que vinha para ficar.

Aos sábados, a ida ao cinema, onde “Os brutos também amam”, “Suplicio de Uma Saudade”, “Por quem os sinos dobram” e os filmes de Hitchcock, como “Um corpo que cai”, “Psicose” e tantos outros faziam-nos arrepiar e nos davam a deixa para nos aconchegarmos aproveitando o escurinho. Filmes que até hoje são lembrados com certa nostalgia, principalmente “Os girassóis da Rússia” e “Assim caminha a Humanidade”, que criaram marcas indeléveis em minha memória. Por quê? Não me lembro. Talvez não queira lembrar.

Como a humanidade, assim também caminhavam meus dias. E eu continuei envolvida com panelas, roupas, casa, cadernos e livros e a tudo me dedicava com muito desvelo. Principalmente aos estudos, pois a formatura no curso Normal iria significar minha independência. Finalmente, chegou o dia. Eu era professora! De pronto consegui algumas aulas na zona rural. Mas não sosseguei. Como o ensino superior estava além do meu alcance, continuei estudando nos cursos que o Estado oferecia. Adorava ensinar. E aprender, principalmente no contato com tantas pessoas diferentes, alunos e colegas de trabalho que me permitiam limasse um pouco as asperezas do convívio familiar numa difícil época. Enfim, a oportunidade chegou. Um concurso público na capital do Estado me levou a buscar o que tanto sonhara.

Uma canção na voz o cantor Miltinho dizia: “você mulher, que já viveu, que já sofreu, não minta, um triste adeus, nos olhos teus, a gente vê, mulher de trinta”. Eu não havia completado trinta anos ainda, mas o adeus era até certo ponto muito triste, pois, embora falsamente despreocupada, seguia para um mundo totalmente desconhecido. Maio de 1972. Fechei a porta do meu ontem e levei, na parca bagagem, muita esperança, sonhos, incertezas, lágrimas, mas também muitas lembranças, algumas frustrações e muita saudade, principalmente da vida que não tinha vivido.

Um mundo novo de descortinava cheio de muitas lutas e medos. E de conquistas. Numa melhor situação financeira, fui vencendo um a um os obstáculos que surgiam, sempre contanto com o apoio incondicional de minha família, mesmo numa época em que a comunicação e a locomoção eram difíceis.

Assim fui subindo um a um os degraus da minha escada da vida. Mais confiante pelas vitórias conseguidas, pelas novas descobertas e pelos amigos novos, a subida se fazia agora mais rápida. Novas conquistas: a tão sonhada faculdade, o primeiro carro, o primeiro apartamento, as primeiras viagens (das muitas que faria conhecendo lugares fantásticos), um amor mais maduro e uma vida social e cultural intensa. O engajamento no trabalho voluntário abriu-me novos horizontes. O contato com os irmãos de fé fortaleceu ainda mais meus laços de amizade, tornando ainda mais prazeroso o trabalho, que me envolvia completamente. Cresci profissionalmente fazendo carreira no magistério. Cresci também espiritualmente: o medo, meu eterno companheiro, já não me era mais tão angustiante. Aprendi a lidar com ele e, no enfrentamento das novas perdas, a fé adormentava minha alma. Os dias correram céleres e a recompensa da aposentadoria chegou finalmente. Foi o fim? Que nada! A vida é um eterno recomeçar. Cada novo dia traz novos projetos, novas aventuras, novas esperanças, novos caminhos. Voltar às origens foi um deles. A calma do interior, o aconchego familiar e a possibilidade de ampliar horizontes me chamaram, e fiz o caminho inverso.

Como na natureza as estações se sucedem e as mudanças são inevitáveis, assim me vejo em pleno outono da vida e me encho de coragem para abandonar as folhas velhas e secas que às vezes teimam em permanecer. Assim como na natureza os ventos ajudam as plantas a se libertarem do que não é mais necessário, busco reforços em novas empreitadas para continuar aprendendo, me renovando a cada dia. “Tudo posso naquele que me fortalece” (Filipenses 4:13). Eu quero; portanto, posso. Agarro-me à intensa vontade de viver intensamente, rodeada daqueles a quem quero bem, aparando as arestas dos relacionamentos, buscando ser uma pessoa melhor a cada dia. “O que te faz um grande mestre é ser um eterno aprendiz”. Vivendo e aprendendo sempre esse é o meu lema. .

Hoje, me debruço no parapeito dos anos passados, faço uma reflexão saudável no passeio descarrilado de minhas pupilas e os flashes que se apresentam são recordações que a memória busca. Não são lembranças de coisas que perdi pelo caminho, mas sim daquelas que juntei para formar o meu eu. E como disse muito bem o poeta Gonzaguinha, eu começaria tudo outra vez, se preciso fosse...