Vida e aprendizagem: um elo indissolúvel

23-09-2014 16:40

Vida e aprendizagem: um elo indissolúvel 

 

 

Transcrevo, aqui, reportagem publicada pela Revista Mente e Cérebro.

 

Desde a primeira molécula, só sobrevivemos graças à aprendizagem. Esse processo que implica desenvolvimento de conexões neurais, comunicação e aquisição de novas formas de ver o mundo e a si mesmo, se dá em vários níveis, torna possível transformar comportamentos e descobrir novas formas de nos relacionarmos conosco e com os outros. O curioso é que o cérebro - pelo menos o da maioria das pessoas saudáveis - parece, em grande parte do tempo, ansioso por captar informações e compreender o mundo.

Recentemente, pesquisadores descobriram que o hipocampo estrutura neural localizada nos lobos temporais, com forma similar à de um cavalo-marinho, (daí a denominação; hippos = cavalo, kampi = curva) funciona como um detector de novidades"; compara informações com os registros já existentes e, caso haja algo novo, envia uma espécie de alerta para outras áreas cerebrais, para que fiquem atentas e apreendam o estímulo. Uma vez deflagrado o estado de predisposição para aprender, outros dados apresentados serão captados com maior facilidade. A descoberta neurocientífica pode ajudar tanto quem quer aprender quanto aqueles que desejam ensinar - mais e melhor. Nas páginas a seguir, especialistas mostram, esse e outros achados que permitem a pessoas de todas as idades utilizar os processos cognitivos a seu favor.

Revista Scientific American - por Daniela Fenker e Harmut Schütze*

  • O fascínio da surpresa

Quando confrontados com o desconhecido, nosso cérebro se empenha para que lembremos não apenas da novidade, mas também das circunstâncias que envolvem o fato - o que nos ajuda a aprender de forma mais prazerosa e eficiente.

Todo dia você faz o mesmo caminho até o trabalho, com o mesmo carro, pelas mesmas ruas, atravessando o cruzamento com o mesmo canteiro entre as vias da avenida. Mas, de repente, algo estranho ocorre: você vê uma vaca malhada pastando no canteiro central! É preciso que alguém buzine para lembrá-lo de que deve andar.

Certamente você vai lembrar durante muito tempo dessa surpresa no trânsito matinal a caminho do trabalho - e, com certeza, recordará também as circunstâncias: que o sol brilhava forte e no rádio tocava We are the champions, que lírios cresciam em um jardim próximo e assim por diante. Por outro lado, todas as particularidades relativas às outras incontáveis vezes que você já passou por esse mesmo cruzamento já devem ter sido esquecidas.

Psicólogos já sabem a razão disso há algum tempo: se vivemos uma situação nova - e inesperada - em um contexto normalmente conhecido, esse acontecimento fica gravado de forma mais intensa na memória. Mas por que é assim? Antes de responder a essa pergunta é importante ressaltar que diversas regiões cerebrais participam dos processos de percepção, processamento e memorização de novas impressões sensoriais. Uma das mais importantes é o hipocampo, que se localiza na parte inferior interna do lobo temporal. Além dele, outras regiões do mesencéfalo, como a substância negra (SN) e a área tegmentarventral (ATV) , também desempenham papel importante nessa atividade.

  • Detector de novidades

No Instituto de Neurologia Cognitiva da Universidade Otto von Guericke, em Magdeburgo, estudamos, em cooperação com Emrah Düzel e Nico Bunzeck, da University College, de Londres, como as células neurais dessas áreas se comunicam entre si. Essa função é desempenhada no cérebro por neurotransmissores, as chamadas substâncias mensageiras", e, nesse caso, principalmente a dopamina. O hipocampo contribui tanto para a fixação de conteúdos na memória quanto para sua reativação. Novos estímulos, de maneira geral, tornam as lembranças mais ativas do que aquelas que se referem aos fatos já conhecidos, por isso ele é considerado o "detector de novidades" do cérebro.

Nesse processo, o hipocampo parece comparar as informações sensoriais que chegam com o conhecimento já memorizado. Se eles não coincidem, o hipocampo envia o sinal "atenção, novo!" através de diversas estações intermediárias, como o núcleoaccumbens e o pallidum ventral, até as regiões já citadas da substância negra e da área tegmentar ventral. Delas, saem fibras neurais de volta para o hipocampo, fazendo com que a dopamina seja liberada várias vezes. Em razão desse processo, pesquisadores como John Lisman, da Universidade Brandeis, e Antony Grace, da Universidade de Pittsburgh, falam em um circuito hipocampo-SN/ ATV .

Essa realimentação é a base biológica para lembrarmos melhor dos fatos ocorridos em um contexto de novidades. Conforme descobriram, em 2003, Shaomin Li e seus colegas no Trinity CoIlege em Dublin, Irlanda, essa liberação de dopamina no hipocampo de ratos de laboratório facilita a potenciação de longa duração (denomina LTP, na sigla em inglês), um fortalecimento duradouro da ligação entre as células neurais - ou seja, das sinapses. Nesse processo, impressões sensoriais ativam continuamente o processamento sináptico entre certos neurônios por um longo período. Com isso, os contatos entre as células se fortalecem, possibilitando a gravação do conteúdo da memória por longo prazo.

Sob o peso da idade

Para que uma pessoa tenha boa memória, o hipocampo e as regiões do mesencéfalo, substância negra e área tegmentarventral (SN/ ATV) devem se comunicar entre si sem empecilhos. Porém, frequentemente essas estruturas cerebrais se atrofiam com o avanço da idade. Especialistas acreditam que muitos problemas de memória associados à idade podem ocorrer devido a esse processo de envelhecimento.

Para investigar a questão, testamos essa conjectura por meio do "Estudo do envelhecimento de Magdeburgo". Iniciada em 2005, a pesquisa vem acompanhando, desde então, 85 voluntários saudáveis com idade entre 55 e 82 anos. Todos realizam regularmente inúmeros testes para avaliação do desempenho da concentração e da memória. Durante os exames, também avaliamos, por meio da chamada medição por MTR (índice de transferência de magnetização), as condições estruturais do hipocampo e da SN/ATV. O valor da MTR serviu como parâmetro para avaliação da densidade de células vivas no tecido: ele é reduzido principalmente no hipocampo de pacientes com a doença de Alzheimer e na substância negra de pessoas com Parkinson.

Nos participantes mais velhos, o hipocampo, a substância negra e a área tegmentar ventral estavam em piores condições do que nos mais jovens. Observamos também que, quanto mais bem conservadas, melhor essas áreas respondiam a novos estímulos. Assim, problemas de memória relacionados à idade podem realmente ser atribuídos, entre outros fatores, à degeneração dessas estruturas. Isso abre uma nova abordagem terapêutica possível para idosos com problemas de memória: talvez psicofármacos, como o precursor de dopamina L-Dopa, possam compensar o prejuízo da comunicação entre as estruturas cerebrais, na medida em que favorecem a potenciação de longa duração no hipocampo. Pesquisas mostram, porém, que o hábito de "exercitar o cérebro" por meio de atividades intelectuais, resolução de palavras cruzadas, leituras e novos aprendizados em geral pode favorecer as habilidades cognitivas e a memória.

  • Estímulos sensoriais

O mecanismo ocorrido no hipocampo utiliza a dopamina como substância mensageira mais importante desse processo, como comprovaram outros experimentos dos pesquisadores de Dublin. Substâncias que bloqueiam o efeito da dopamina impediram a formação da memória em ratos. Mas, até então, ainda não havia sido esclarecido em que medida essa realimentação que ocorre entre o mesencéfalo e o hipocampo também ajuda seres humanos a descobrir coisas novas e a guardá-Ias na memória. Passamos a questionar então se, dessa forma, novos estímulos sensoriais poderiam facilitar também a memorização de outras informações, já conhecidas, que as pessoas recebessem junto com os estímulos desconhecidos. E, em caso positivo, será que isso depende da ativação do mesmo circuito neuronal desencadeado pelos novos estímulos?

  • Memória alerta

Com ajuda da tomografia por ressonância magnética funcional (TRMf), a qual mede a atividade das regiões cerebrais pelo fluxo de sangue, examinamos as questões acima mais profundamente. Para tanto, apresentamos a voluntários duas combinações de imagens: no primeiro grupo havia figuras inéditas, que as pessoas nunca haviam visto, misturadas a outras, já bastante divulgadas na mídia; no segundo grupo estavam apenas imagens já vistas pelos participantes. Resultado: no primeiro caso, os sujeitos se lembraram melhor das fotos do que no segundo. Percebemos que em um contexto com grande valor de inovação, portanto, aumentava consideravelmente a capacidade retentiva da memória, como se ao perceber a novidade, algumas regiões do cérebro entrassem em "estado de alerta".

Segundo os dados obtidos por meio da TRMf, durante essa atividade, quanto mais conhecidas eram as imagens mostradas aos voluntários da pesquisa, menos os neurônios se agitavam no mesencéfalo (SN e ATV) assim como no hipocampo. Sendo assim, o surto de atividades desencadeado pela novidade nessas áreas parece ser realmente o motivo para o melhor desempenho da memória.

Uma outra questão interessante: quanto tempo dura o efeito positivo da novidade? Sabe-se pelos experimentos dos pesquisadores da Irlanda, liderados por Shaomin Li que, em roedores, o efeito ocorre não apenas durante a oferta de novos estímulos, mas também por um considerável período depois. Estudos mostram que pode ser facilmente desencadeada no hipocampo dos ratos uma potenciação de até 30 minutos após a estimulação neural. Ou seja, após depararem com uma novidade, os cérebros das cobaias pareciam mais aptos a armazenar informações.

Mas o que aconteceria a seres huumanos se lhes apresentássemos novos estímulos antes de uma atividade de ensino? Essa prática pode favorecer a aprendizagem e torná-Ia mais prazerosa? A fim de responder a essas questões, inicialmente mostramos diversas fotografias a pessoas com idade entre 18 e 30 anos e registramos a sua atividade cerebral por meio de TRMf. Além disso, os participantes da pesquisa receberam uma série de palavras que deviam organizar segundo o seu significado.

No dia seguinte, o experimento teve continuidade: foram apresentadas novas imagens aos sujeitos que compunham o grupo experimental; os demais, do grupo de controle, viram as mesmas figuras já conhecidas no dia anterior. Na sequência, todos receberam mais uma vez a lista de palavras já trabalhada. Por fim, eles deviam tentar lembrar do maior número possível de conceitos. Nessa tarefa, o desempenho da memória dos participantes do grupo experimental também foi claramente melhor do que o do grupo de controle: os participantes aos quais foram mostradas novas imagens antes da lista de palavras puderam lembrar de maior número de vocábulos do que aqueles aos quais foram exibidas fotos conhecidas.

  • Memória e prazer

Nos sujeitos do grupo experimental o hipocampo, diretamente envolvido na reativação de memória, assim como a substância negra e a área tegmentar ventral, mais uma vez se mostraram mais ativos durante a observação de novas imagens, em comparação com aqueles que viram fotografias conhecidas. Pode-se concluir que a novidade também pode estimular a potenciação de longa duração no hipocampo - até mesmo depois de transcorrido certo tempo da apresentação.

Ou seja: a novidade pode estimular o aprendizado e a memória, além de tornar mais agradável e eficiente o desafio de aprender. Essa conclusão fornece aos educadores uma possível ferramenta para a estruturação mais eficiente de suas aulas: o uso estratégico de conteúdos-surpresa. E, na prática, seria conveniente considerar que talvez muitos professores estejam cometendo um equívoco ao, primeiramente, rever a matéria da última aula antes de passar para o novo tema. Em vez disso, eles deviam inverter essa ordem, transmitindo primeiramente as informações desconhecidas e depois repassando a matéria antiga. Assim, talvez as atividades de revisão, tão mal vistas, deixassem mais vestígios em nossa memória. 

Para entender melhor

1. Área tegmentar ventral: região no mesencéfalo que se localiza atrás da substância negra. Ela é parte do sistema de recompensa do cérebro, uma das principais fontes de impulsos e de motivação.

2. Dopamina: as células neurais nas quais se encontra o neurotranssmissor dopamina são chamadas dopaminérgicas. Elas se localizam principalmente no mesencéfalo.

3. Tomografia por ressonância magnética funcional (TRMf): procedimento por imagem com alta resolução para a representação das estruturas ativas no corpo, principalmente no cérebro. Quando o metabolismo acelera, eleva-se o fluxo sanguíneo; a porcentagem de sangue rico em oxigênio aumenta, reforçando o sinal luminoso, o que permite a identificação de regiões mais ativas.

4. Hipocampo: parte do lobo temporal do córtex, onde informações de diversos sistemas sensoriais se juntam; desempenha um importante papel para a formação da memória. Se ele deixa de funcionar nos dois hemisférios cerebrais, a pessoa afetada não é mais capaz de gravar novas informações na memória de longo prazo. 

5. Potenciação de longa duração (LTP): melhora duradoura da comunicação entre neurônios em decorrência da transmissão de impulsos entre eles. A potenciação de longa duração é considerada o mecanismo celular mais importante para a aprendizagem e a memória.

6. Medição por MTR (índice de transferência de magnetização): uma forma especial da tomografia por ressonância magnética que mede a proporção de prótons de água ligados a macromoléculas em relação aos prótons livres. Essa proporção se reduz quando há lesão tissular, o que leva a um valor mais baixo da MTR.

7. Substância negra (SN): concentração de corpos celulares neurais no mesencéfalo, com aparência escura, devido a um alto teor de ferro e melanina. A SN desempenha um importante papel na coordenação de movimentos.

Conceitos-chave

- As áreas cerebrais importantes para a formação da memória são o hipocampo (que fica no lobo temporal), a substância negra (SN) e a área tegmentar ventral (ATV), localizadas no mesencéfalo. O hipocampo, que participa tanto da formação de novos conteúdos mnemônicos quanto de sua reativação, é considerado um "detector de novidades" cerebral.

- Essas regiões formam, por meio de ligações de fibras neurais, o "circuito hipocampo-SN/ATV", por meio do qual o cérebro registra a existência de informações novas, o que eleva sua capacidade de reter dados por certo período. Com o passar dos anos, esse mecanismo sofre uma espécie de desgaste, tendendo a funcionar mais lentamente, o que pode explicar os problemas de memória de pessoas idosas.

- A novidade pode estimular a cognição, além de tornar o aprendizado mais interessante. Sabendo disso, professores podem aumentar a eficiência de suas aulas, oferecendo aos alunos elementos que os surpreendam, como uma forma de "preparar" seu cérebro para assimilar novas informações.

Para conhecer mais

Como o cérebro aprende. Edição especial Mente e Cérebro nº8. Duetto Editorial. 
O mistério da consciência. A. Damásio. Cia. das Letras, 2000. 
Cem bilhões de neurônios. R. Lent. Athenas, 2004.

*DANIELA FENKER e HARTMUT SCHÜTZE são pesquisadores da Clínica de Neurobiologia da Universidade Otto von Guericke de Magdeburgo.